Žižek: A utopia de Piketty

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Por Slavoj Žižek.

Le Capital au XXIe siècle é um livro essencialmente utópico. Por que? Por conta de sua modéstia. Thomas Piketty percebe a tendência inerente do capitalismo à desigualdade social, de tal forma que a ameaça à democracia parte do interior da própria dinâmica capitalista. Até aí tudo bem, estamos de acordo. Ele vê o único ponto luminoso da história do capitalismo entre as décadas de 30 e de 60, quando essa tendência à desigualdade era controlada, com um Estado mais forte, Welfare State etc. Mas reconhece ainda que as condições para isso foram – e eis a trágica lição do livro – Holocausto, Segunda Guerra Mundial e crise. É como se estivesse implicitamente sugerindo que nossa única solução viria com uma nova guerra mundial, ou algo assim!

Veja o texto completo no Blog da Boitempo, clique aqui.

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Décima carta às esquerdas: Democracia ou Capitalismo?

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Por Boaventura de Sousa Santos, no Brasil de Fato

No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.

Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante muito tempo foi chamado  Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.

Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia. Nesta carta concebo  o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referencia ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi teorizada pelo liberalismo.

O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é, no fundo um conflito de classes pois as classes que se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do capitalismo.

Sendo um conflito de classes, afirma-se social e politicamente como um conflito distributivo: por um lado, a pulsão para a acumulação e concentração da riqueza por parte dos capitalistas e, por outro, a reivindicação da redistribuição da riqueza criada em boa parte pelos trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve sempre pavor de que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que tal ocorresse. Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo através de medidas que mudaram no tempo mas mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização dos lóbis. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta a possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.

No imediato pós-segunda guerra mundial muito poucos países tinham democracia, vastas regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que servira para consolidar o capitalismo euro-norte-americano, a Europa estava devastada por mais uma guerra provocada pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-se o regime comunista que se via como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal.

Foi neste contexto que surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo democrático, um sistema de economia política assente na ideia de que, para ser compatível com a democracia, o capitalismo deveria ser fortemente regulado, o que implicava a nacionalização de sectores-chave da economia, a tributação progressiva, a imposição da negociação coletiva e até, como aconteceu na então Alemanha Ocidental, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No plano científico, Keynes representava então a ortodoxia económica e Hayek, a dissidência. No plano político, os direitos econômicos e sociais (direitos do trabalho, educação, saúde e segurança social garantidos pelo Estado) foram o instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas dos cidadãos e as defender das flutuações constantes e imprevisíveis dos “sinais dos mercados”.

Esta mudança alterava os termos do conflito distributivo mas não o eliminava. Pelo contrário, tinha todas as condições para o acirrar logo que abrandasse o crescimento económico que se seguiu nas três décadas seguintes. E assim sucedeu.

Desde 1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre as exigências dos cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um conjunto de soluções que gradualmente foram dando mais poder ao capital. Primeiro, foi a inflação (1970-1980)), depois, a luta contra a inflação acompanhada do aumento do desemprego e do ataque ao poder dos sindicatos (1980-), uma medida complementada com o endividamento do Estado em resultado da luta do capital contra a tributação, da estagnação económica e do aumento das despesas sociais decorrentes do aumento do desemprego (meados de 1980-) e, logo depois, com o endividamento das famílias, seduzidas pelas facilidades de crédito concedidas por um sector financeiro finalmente livre de regulações estatais, para iludir o colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação (meados de 1990-).

Até que a engenharia das soluções fictícias chegou ao fim com a crise de 2008 e se tornou claro quem tinha ganho o conflito distributivo: o capital. Prova disso: a conversão da dívida privada em dívida pública, o disparar das desigualdades sociais e o assalto final às expectativas de vida digna da maioria (os trabalhadores, os pensionistas, os desempregados, os imigrantes, os jovens em busca de emprego,) para garantir as expectativas de rentabilidade da minoria (o capital financeiro e seus agentes). A democracia perdeu a batalha e só não perderá a guerra se as maiorias perderem o medo, se se revoltarem dentro e fora das instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo, como sucedeu há sessenta anos.

Nos países do sul global que dispõem de recursos naturais a situação é, por agora, diferente. Nalguns casos, como por exemplo em vários países da América Latina, pode até dizer-se que a democracia está a vencer o duelo com o capitalismo e não é por acaso que em países como a Venezuela e o Equador se tenha começado a discutir o tema do socialismo do século XXI mesmo que a realidade esteja longe dos discursos. Há muitas razões para tal mas talvez a principal tenha sido a conversão da China ao neoliberalismo, o que provocou, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma nova corrida aos recursos naturais.

O capital financeiro encontrou aí e na especulação com produtos alimentares uma fonte extraordinária de rentabilidade. Isto tornou possível que governos progressistas, entretanto chegados ao poder no seguimento das lutas e dos movimentos sociais das décadas anteriores, pudessem proceder a uma redistribuição da riqueza muito significativa e, em alguns países, sem precedente.

Por esta via, a democracia ganhou uma nova legitimação no imaginário popular. Mas por sua própria natureza, a redistribuição de riqueza não pôs em causa o modelo de acumulação assente na exploração intensiva dos recursos naturais e antes o intensificou. Isto esteve na origem de conflitos, que se têm vindo a agravar, com os grupos socias ligados à terra e aos territórios onde se encontram os recursos naturais, os povos indígenas e os camponeses.

Nos países do sul global com recursos naturais mas sem democracia digna do nome o boom dos recursos não trouxe consigo nenhum ímpeto para a democracia, apesar de, em teoria, a mais fácil resolução do conflito distributivo facilitar a solução democrática e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extractivista obtém melhores condições de rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou de democracia de baixíssima intensidade (sistemas de quase-partido-único) onde é mais fácil a corrupção das elites, através do seu envolvimento na privatização das concessões e das rendas extractivistas. Não é pois de esperar nenhuma profissão de fé na democracia por parte do capitalismo extractivista, até porque, sendo global, não reconhece problemas de legitimidade política.

Por sua vez, a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte das maiorias não chega a ser ouvida, por falta de canais democráticos e por não poder contar com a solidariedade das restritas classes médias urbanas que vão recebendo as migalhas do rendimento extractivista. As populações mais diretamente afetadas pelo extrativismo são os camponeses em cujas terras estão a jazidas de minérios ou onde se pretende implantar a nova economia de plantação, agro-industrial.  São expulsas de suas terras e sujeitas ao exilio interno. Sempre que resistem são violentamente reprimidas e sua resistência é tratada como um caso de polícia.
Nestes países, o conflito distributivo não chega sequer a existir como problema político.

Desta análise conclui-se que o futuro da democracia atualmente posto em causa na Europa do Sul é manifestação de um problema muito  mais vasto que está a aflorar em diferentes formas nas várias regiões do mundo. Mas, formulado  assim, o problema pode ocultar uma incerteza bem maior do que a que expressa. Não se trata apenas de questionar o futuro da democracia. Trata-se também de questionar a democracia do futuro.

A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me parece que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança em que o capitalismo volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta última sobreviverá na medida em que o capitalismo global se puder servir dela. A luta daqueles e daquelas que veem na derrota da democracia liberal a emergência de um mundo repugnantemente injusto e descontroladamente violento têm de centrar-se na busca de uma conceção de democracia mais robusta cuja marca genética seja o anti-capitalismo.

Depois de um século de lutas populares que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário da emancipação social seria um erro político grave desperdiçar essa experiência e assumir que luta anti-capitalista tem de ser também uma luta anti-democrática. Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático numa realidade radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não exerce o seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e do patriarcado, tal democracia radical, além de anti-capitalista tem de ser também anti-colonialista e anti-patriarcal.

Pode chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária–o nome pouco importa–mas é necessariamente uma democracia pós-liberal, que não aceita ser descaracterizada para se acomodar às exigências do capitalismo. Pelo contrário, assenta em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à custa do capitalismo; em caso de conflito entre capitalismo e democracia é a democracia real que deve prevalecer.

Sobre o tema ver também uma entrevista com o autor, clique aqui.

David Harvey: leia Piketty, mas não se esqueça de Marx

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No Outras Palavras

Por David Harvey | Tradução: Inês Castilho

Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital que causou uma tremenda comoção. Ele defende a taxação progressiva e a tributação da riqueza global como único caminho para deter a tendência à criação de uma forma “patrimonial” de capitalismo, marcada pelo que chama de uma desigualdade “apavorante” de riqueza e renda. Também documenta com detalhes excruciantes, e difíceis de rebater, como a desigualdade social de ambos, riqueza e renda, evoluíram nos últimos dois séculos, com ênfase particular no papel da riqueza. Ele aniquila a visão, amplamente aceita, de que o capitalismo de livre mercado distribui riqueza e é o grande baluarte para a defesa das liberdades individuais. Piketty demonstra que o capitalismo de livre mercado, na ausência de uma grande intervenção redistributiva por parte do Estado, produz oligarquias antidemocráticas. Essa demonstração deu base à indignação liberal e levou o Wall Street Journal à apoplexia.

O livro tem sido frequentemente apresentado como substituto para o século 21 do trabalho do século 19 de Marx, que leva o mesmo título. Piketty nega que fosse essa sua intenção, na verdade – o que parece certo, uma vez que seu livro não é, de modo algum, sobre o capital. Ele não nos conta por que razão ocorreu a catástrofe de 2008, e por que está demorando tanto para tanta gente se levantar, sob o fardo do desemprego prolongado e da execução da hipoteca de milhões de casas. Ele não nos ajuda a entender por que o crescimento é tão medíocre hoje nos EUA, em oposição à China, e por que a Europa está travada sob uma política de austeridade e uma economia de estagnação.

O que Piketty mostra estatisticamente (e estamos em dívida com ele e seus colegas por isso) é que o capital tendeu, através da história, a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Isso, para muitos de nós, é má notícia. Além disso, é exatamente a conclusão teórica de Marx, no primeiro volume de sua versão do Capital. Piketty fracassa em observar isso, o que não é surpresa, já que sempre clamou, diante das acusações da mídia de direita de que é um marxista disfarçado, que não leu O Capital de Marx.

Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar sua argumentação. Sua descrição das diferenças entre renda e riqueza é persuasiva e útil. E faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre herança, do imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global como possíveis (embora quase certamente não politicamente viável) antídotos contra o avanço da concentração de riqueza e poder.

Mas, por que razão ocorre essa tendência ao crescimento da desigualdade? A partir de seus dados (temperados com ótimas alusões literárias a Jane Austen e Balzac), ele deriva uma lei matemática para explicar o que acontece: o contínuo aumento da acumulação de riqueza por parte do famoso 1% (termo popularizado graças, claro, ao movimento Occupy) é devido ao simples fato de que a taxa de retorno sobre o capital (r) sempre excede a taxa de crescimento da renda (g). Isso, diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital.

Mas esse tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma explicação adequada, quanto mais uma lei. Então, que forças produzem e sustentam tal contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e isso é tudo. Marx obviamente teria atribuído a existência de tal lei ao desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação ainda está valendo. A queda constante da participação do trabalho na renda nacional, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do poder político e econômico, à medida que o capital mobilizava tecnologia, desemprego, deslocalização de empresas e políticas antitrabalho (como as de Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para destruir qualquer oposição.

Como Alan Budd, um conselheiro econômico de Margaret Thatcher, confessou num momento em que baixou a guarda: as políticas anti-inflação dos anos 1980 mostraram-se “uma maneira muito boa de aumentar o desemprego, e aumentar o desemprego era um modo extremamente desejável de reduzir a força das classes trabalhadoras… o que foi construído, em termos marxistas, como uma crise do capitalismo que recriava um exército de mão de obra de reserva, possibilitou que os capitalistas lucrassem mais do que nunca.” A disparidade entre a remuneração média dos trabalhadores e dos executivos-chefes era cerca de trinta para um em 1970. Hoje está bem acima de trezentos para um e, no caso do MacDonalds, cerca de 1200 para um.

Mas no segundo volume do Capital de Marx (que Piketty também não leu, como alegremente declara) Marx apontou que a tendência do capital de rebaixar os salários iria, em algum momento, restringir a capacidade do mercado de absorver os produtos do capital. Henry Ford reconheceu esse dilema há muito tempo, quando determinou o salário de cinco dólares para o dia de oito horas dos trabalhadores – para aumentar a demanda dos consumidores, disse.

Muitos pensavam que a falta de demanda efetiva estava na base da Grande Depressão da década de 1930. Isso inspirou políticas expansionistas keynesianas depois da Segunda Guerra Mundial e resultou em alguma redução das desigualdades de renda (nem tanto da riqueza), em meio a uma forte demanda que levou ao crescimento. Mas essa solução apoiava-se no relativo empoderamento do trabalho e na construção do “estado social” (termo de Piketty) financiado pela taxação progressiva. “Tudo dito”, escreve ele, “durante o período de 1932-1980, durante cerca de meio século, o imposto de renda federal mais alto, nos EUA, era em média 81%.” E isso de modo algum prejudicou o crescimento (outra parte das evidências de Piketty, que rebate os argumentos da direita).

Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capitalistas que eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo poder do trabalho. Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos economistas respeitáveis, o pensamento de Milton Friedman deslocou-se para o lado da oferta, e teve início uma cruzada para estabilizar, se não para reduzir a tributação, desconstruir o Estado social e disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, houve uma queda nas taxas mais altas de imposto e os ganhos do capital – uma grande fonte de renda dos ultra ricos – passaram a ser tributados por taxas muito menores nos EUA, aumentando enormemente o fluxo de capital do 1% do topo da pirâmide.

Contudo, o impacto no crescimento era desprezível, mostra Piketty. Tal “efeito cascata” de benefícios dos ricos ao restante da população (outra crença favorita da direita) não funcionou. Nada disso era ditado por leis matemáticas. Tudo era política. Mas então a roda deu uma volta completa, e a pergunta mais importante tornou-se: e cadê a demanda?

Piketty ignora essa questão. Os anos 1990 encobriram essa resposta com vasta expansão do crédito, inclusive estendendo o financiamento hipotecário aos mercados sub-prime. Mas o resultado foi uma bolha de ativos fadada a estourar, como aconteceu em 2007-2008, levando consigo o banco de investimento Lehman Brothers, juntamente com o sistema de crédito. Entretanto, enquanto tudo e todos se davam mal, depois de 2009 as taxas de lucro, e a consequente concentração de riqueza privada, recuperaram-se muito rapidamente. As taxas de lucro das empresas estão agora tão altas quanto sempre estiveram nos EUA. As empresas estão sentadas sobre grande quantidade de dinheiro e recusam-se a gastá-lo, porque as condições do mercado não estão robustas. A formulação da lei matemática de Piketty camufla, mais do que revela a respeito da classe política envolvida. Como notou Warren Buffett, “claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos, que está lutando, e estamos vencendo.” Uma medida-chave de sua vitória são as crescentes disparidades da riqueza e renda do 1% do topo em relação a todo o resto da população.

Há, contudo, uma dificuldade central no argumento de Piketty. Ele repousa sobre uma definição equivocada de capital. Capital é um processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é usado para fazer mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente – por meio da exploração da força de trabalho. Piketty define capital como o estoque de todos os ativos em mãos de particulares, empresas e governos que podem ser negociados no mercado – não importa se estão sendo usados ou não. Isso inclui terra, imóveis e direito de propriedade intelectual, assim como coleção de arte e de joias. Como determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil, sem solução consensual. Para calcular uma taxa de retorno, r, significativa, temos de ter uma forma de avaliar o capital inicial. Não há como avaliá-lo independentemente do valor dos bens e serviços usados para produzi-lo, ou por quanto ele pode ser vendido no mercado.

Todo o pensamento econômico neoclássico (base do pensamento de Piketty) está fundado numa tautologia. A taxa de retorno do capital depende essencialmente da taxa de crescimento, porque o capital é avaliado pelo modo como produz, e não pelo que ocorreu em sua produção. Seu valor é fortemente influenciado por condições especulativas, e pode ser seriamente distorcido pela famosa “exuberância irracional” que Greenspan apontou como característica dos mercados imobiliário e de ações. Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar do valor das coleções de arte dos financiadores de hedge – a partir da definição de capital (e as razões para sua inclusão são bastante débeis), então a explicação de Piketty para o aumento das disparidades de riqueza e renda desabariam, embora sua descrição do estado das desigualdades passadas e presentes ainda ficassem em pé.

Dinheiro, terra, imóveis, fábricas e equipamentos que não estão sendo usados produtivamente não são capital. Se é alta a taxa de retorno sobre o capital que está sendo usado, é porque uma parte do capital foi retirado de circulação. Restringir a oferta de capital para novos investimentos (fenômeno que estamos testemunhando agora) garante uma alta taxa de retorno sobre o capital que está em circulação. A criação dessa escassez artificial não é só o que fazem as companhias de petróleo, para garantir a sua elevada taxa de lucro: é o que todo o capital faz quando tem oportunidade. É o que sustenta a tendência de a taxa de retorno sobre o capital (não importa como é definido e medido) exceder sempre a taxa de crescimento da renda. Esta é a forma como o capital garante sua própria reprodução, não importa quão desconfortáveis sejam as consequências para o resto de nós. E é assim que a classe capitalista vive.

Há muitas outras coisas valiosas nos dados coletados por Piketty. Mas, sua explicação de porque as tendências à desigualdade e à oligarquia surgem está seriamente comprometida. Suas propostas de solução para a desigualdade são ingênuas, se não utópicas. E ele certamente não produziu um modelo de trabalho para o capital do século 21. Para isso, ainda precisamos de Marx ou de seus equivalentes para os dias atuais.

Para Verissimo o capitalismo neoliberal interessa aos poderosos e é um desastre

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Hoje no O Globo

O caminho

Concentração de renda não se deve à meritocracia, já que vem principalmente de dinheiro herdado

Um espectro ronda a Europa e o resto do mundo onde a receita neoliberal contra a crise é austeridade para os pobres e liberdade total para os ricos enriquecerem cada vez mais. O espectro tem nome e sobrenome: Thomas Piketty. É um jovem economista francês cujo livro “O capital no século XXI” é um best-seller internacional e está apavorando muita gente. Não há resposta para a sua tese de que a ideia de que basta deixar os ricos se lambuzarem que sobrará para os pobres — todos se beneficiarão e a desigualdade acabará no planeta — é furada como um donut — a não ser chamá-lo de um marxista com preconceitos previsíveis. Mas justamente o que assusta em Piketty é que sua tese foge da ortodoxia marxista e é baseada em retrospectiva academicamente irretocável e fatos e números inegáveis, não em ideologia. Ela apenas prova que a lição dos últimos anos, quando o capital financeiro se adonou do mundo, é não apenas que o caminho tomado está errado e só levará a mais desigualdade como todos os argumentos usados para justificá-lo são falsos. A concentração de renda não se deve a nenhum tipo de meritocracia, já que vem principalmente de dinheiro herdado ou produzido pelo próprio dinheiro, sem nenhum proveito social, e nem as oligarquias mais “esclarecidas” estão prontas a renunciar à sua capacidade de autogeração, que, no caso, é a possibilidade de se autorremunerar ao infinito. A continuar assim, diz Piketty, a história do capitalismo no século XXI será a do crescente confronto com a desigualdade e com a revolta que ela, cedo ou tarde, mas fatalmente, provocará.

Gosto daquela cena num filme dos irmãos Marx em que Groucho, no papel de um general, prepara-se para explicar a seus comandados o significado de um mapa na parede. “Uma criança de 3 anos entenderia este mapa”, diz Groucho. E, depois de estudar o mapa por alguns minutos: “Tragam uma criança de três anos!” Sem querer diminuí-lo — ao contrário — acho que monsieur Piketty é a criança de 3 anos desta história. Ele traz uma visão nova de uma situação que todo mundo está vendo mas nem todo mundo enxerga ou quer enxergar, e que a criança de 3 anos veria com a mesma simplicidade, sem os mesmos recursos do francês. Mas também desconfio que, passado o primeiro susto, a tese de Piketty terá o mesmo efeito da explicação da hipotética criança de 3 anos — muito pouco. A lição que Piketty aprendeu ou apreendeu no passado estava evidente. Se o caminho errado continua o mesmo é porque interessa economicamente e politicamente a quem tem o poder e não quer distribuí-lo como se distribui renda. É um caminho para o desastre conscientemente assumido.

Entrevista István Mészáros: A barbárie no horizonte

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Na Folha de S. Paulo de hoje

Filósofo húngaro encara a crise do capitalismo

ELEONORA DE LUCENA

RESUMO O filósofo húngaro István Mészáros, principal discípulo e conhecedor da obra de seu conterrâneo György Lukács, lança livro e faz palestras no Brasil. O pensador marxista argumenta que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram e defende mudanças estruturais para conter a crise do capitalismo.

A atual crise do capitalismo, que faz eclodir protestos por toda a parte, é estrutural e exige uma mudança radical. Essa é a visão do filósofo István Mészáros, 82.

Professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o marxista Mészáros defende que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele diz que o avanço da pobreza em países ricos demonstra que “há algo de profundamente errado no capitalismo”, que hoje promove uma “produção destrutiva”.

Mészáros vem ao Brasil para palestras em São Paulo (amanhã, no Tuca, às 19h), Marília, Belo Horizonte e Goiânia. Maior discípulo e conhecedor da obra do também filósofo húngaro marxista György Lukács (1885-1971), Mészáros lançará aqui o seu livro “O Conceito de Dialética em Lukács” [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 176 págs.], dos anos 60.

A mesma editora lança, de Lukács, “Para uma Ontologia do Ser Social 2” [trad. Ivo Tonet, Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes, R$ 98, 856 págs.] e o volume “György Lukács e a Emancipação Humana” [org. Marcos Del Roio, R$ 39, 272 págs.].

Folha – O sr. vem ao Brasil para falar sobre Lukács. Como avalia a importância das suas ideias hoje?

István Mészáros – Lukács foi meu grande professor e amigo por 22 anos, até sua morte, em 1971. Ele começou como crítico literário e transitou para temas filosóficos fundamentais, em trabalhos com implicações de longo alcance. Fala-se menos de sua atuação política direta entre 1919 e 1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo revolucionário da Hungria em 1919 e é um exemplo de que moralidade e política não só devem como podem andar juntas. Continuar lendo

Neoliberalismo, capitalismo e os ciclos de Kondratiev

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Por Diogo Costa, no Luis Nassif

NEOLIBERALISMO, CAPITALISMO E OS CICLOS DE KONDRATIEV – A queda do Muro de Wall Street, conhecido também como o Crash de 15 de setembro de 2008, logo suscitou análises apressadas profetizando o fim do capitalismo. Lamento, mas o neoliberalismo é apenas uma vertente do capitalismo, uma de suas faces. O capitalismo não irá perecer por conta da ruína neoliberal. Muito antes pelo contrário. Poderá seguir seu curso com mais força ainda após a purga do sistema. Continuar lendo

Crise beneficia os mais ricos, diz o geógrafo David Harvey

Harvey durante debate no Fórum Social Mundial, em 2009. Foto de Janduari Simões - 29.jan.2009/Folhapress

Hoje na Folha de S. Paulo

Crise beneficia os mais ricos, diz geógrafo

Para David Harvey, a lógica das políticas de austeridade é perpetuar o desastre econômico e concentrar mais o poder

Professor vê ascensão do nacionalismo e diz esperar movimentos mais sólidos contra a desigualdade no mundo

ELEONORA DE LUCENA

DE SÃO PAULO

As políticas de austeridade perpetuam o desastre econômico. E há uma lógica por trás disso: os ricos e poderosos se beneficiam da crise, que provoca mais concentração de renda e de poder político. A análise é do geógrafo marxista David Harvey, 76.

Professor de antropologia da Universidade da Cidade de Nova York, ele fala da ascensão do pensamento de direita e espera a emergência mais sólida de movimentos contra a desigualdade.

“Até pessoas muito ricas, como Warren Buffett, reconhecem que a desigualdade foi longe demais”, afirma.

Harvey estará no Brasil nesta semana para debates em São Paulo e no Rio e para o lançamento de seu livro “O Enigma do Capital”.

Folha – Como analisa a crise?

David Harvey – As crises não são acidentes. São fundamentais para o funcionamento do capitalismo. O capital não resolve as crises, mas as move de um lugar para o outro.

Que mudanças ocorrerão?

A China está além do limite e terá problemas difíceis. Há superprodução e superinvestimento e haverá fortes pressões inflacionárias.

Como avalia o caso da Grécia?

A Grécia terá que declarar moratória e deixar o euro. No curto prazo, pode ser traumático, mas a Argentina decretou moratória e voltou mais forte. É preciso sair do euro para fazer o que a Argentina fez: desvalorizar a moeda.

Qual o impacto dessa crise na política?

A visão da direita é muito nacionalista. Há a emergência do nacionalismo não só na Grécia, mas em outras partes, o que pode se mover para ditaduras. Há uma transferência de riqueza do povo para os bancos, e o povo protesta em muitos países.

A crise ampliará a diferença entre ricos e pobres?

Nos EUA, os dados mostram que a desigualdade de renda cresceu de forma notável com a crise. Cresce também a desigualdade de poder político. Há muitos movimentos no mundo contra a desigualdade.

Mas a direita cresce.

Sim. Não é só a direita que está crescendo, mas um movimento nacionalista, que também existe na esquerda. Uma das respostas políticas é tentar cortar as ligações com a globalização e buscar um programa de autonomia local e de autodeterminação local, demandas que estão na esquerda e na direita.

Isso pode levar a guerras?

Gerará mais tensões. Podemos ver conflitos militares regionais, não o tipo de guerra dos anos 40. Por exemplo, o Brasil tem uma versão disso nos conflitos das favelas do Rio de Janeiro.

E o que deve ser feito?

É preciso que haja um movimento político que enfrente a questão sobre qual deve ser o futuro do capital. Não vejo nenhum movimento fazendo isso de forma coerente. É o que tento estimular.

E o que o sr. defende?

Acredito que os trabalhadores precisam ter o controle do seu processo produtivo. Eles deveriam se auto-organizar em fábricas, locais de trabalho, nas cidades. A ideia é que associações de trabalhadores possam regular sua produção e suas decisões. É preciso também ter um mecanismo de coordenação, o que é diferente dos mercados.

Isso não é tarefa do Estado?

Historicamente o Estado tem que fazer isso, mas muitas pessoas não confiam no Estado, pois ele é muitas vezes corrupto e foi desenhado essencialmente para benefício do capital, não em benefício do povo. É preciso pensar numa forma alternativa de coordenação e organização.

Em “O Enigma do Capital” (2010), o sr. propõe criar um “partido da indignação” contra um “partido de Wall Street”. Como vai essa ideia?

Há muitas diferenças entre os movimentos pelo mundo. Nos EUA, o movimento “Occupy” é pequeno e fragmentado e não está maduro em termos de força política. Isso poderá ser mudado.

Em “O Novo Imperialismo” (2003), o sr. fala da questão da hegemonia dos EUA. Como vê isso hoje?

Os EUA continuarão a ser um poder significativo, mas não da forma que foram nos anos 70 e 80. Haverá poderes hegemônicos regionais. O Brasil será um deles. China, Índia e Alemanha também.

O consumismo é ainda a chave para a paz social nos EUA, como o sr. diz no mesmo livro?

Austeridade reduz o padrão de vida, o consumo, a produção e o emprego. Torna as coisas ainda piores. Mas EUA e Europa estão engajados na política da austeridade, e isso está perpetuando a crise. Mas há uma lógica por trás na perpetuação da crise: as pessoas poderosas e influentes se beneficiam dela. Os ricos estão indo muito bem. Portanto, perpetuar a crise é uma forma de perpetuar seu crescente poder e sua crescente riqueza.

Em “The Limits to Capital” (1982), o sr. descreve a dinâmica do capital. O poder das finanças cresce com a crise?

Sim. O capital financeiro é hoje importante como nunca foi. Mais ativos serão fornecidos ao setor bancário. Quando é preciso mais dinheiro, o Fed [banco central dos EUA] aparece com um trilhão de dólares e joga no mercado.

Portanto, não há limite à capacidade de criar o poder do dinheiro. Há limites em muitas outras áreas: recursos naturais, produção de commodities etc. Não há limite ao poder do capital financeiro.

O sr. está otimista?

Sou otimista no sentido de que acredito que as pessoas vão reconhecer que há limites sérios no capitalismo e que é preciso considerar modos alternativos. De outro lado, a volatilidade é tanta que as pessoas podem tomar direções malucas, o que pode levar a autoritarismos e a sérias rupturas na economia.

As ideias que o sr. defende não podem ser consideradas utópicas?

Pode ser. Mas mesmo o pensamento dominante está começando a reconhecer que o nível de desigualdade que existe hoje não pode ser sustentado. Até pessoas muito ricas, como Warren Buffett, reconhecem que a desigualdade foi longe demais.

Leia a íntegra da entrevista
folha.com/no1053440

A “crise do capitalismo global” – Crise de quem? Quem lucra? – por James Petras

Divulgado pelo Engajarte

Desde o Financial Times até a extrema-esquerda, toneladas de tinta têm sido gastas a escrever acerca de alguma variante da “Crise do capitalismo global”. Se bem que os autores divirjam quanto às causas, consequências e curas, de acordo com as suas luzes ideológicas, há um acordo comum em que “as crises” ameaçam acabar o sistema capitalista tal como o conhecemos.

Não há dúvida de que, entre 2008 e 2009, o sistema capitalista na Europa e nos Estados Unidos sofreu um choque severo que abalou os fundamentos do seu sistema financeiro e ameaçou levar à bancarrota seus “setores principais”.
Contudo, argumentarei que as “crises do capitalismo” foram transformadas em “crises do trabalho”. O capital financeiro, o principal detonador do crash e da crise, recuperou-se, a classe capitalista como um todo foi fortalecida e, acima de tudo, ela utilizou as condições políticas, sociais e ideológicas criadas em resultado das “crises” para mais uma vez consolidar sua dominação e exploração sobre o resto da sociedade.
Por outras palavras, a “crise do capital” foi convertida numa vantagem estratégica para promover os interesses mais fundamentais do capital: a expansão de lucros, a consolidação do domínio capitalista, a maior concentração da propriedade, o aprofundamento de desigualdades entre capital e trabalho e a criação de enormes reservas de trabalho para promover o aumento dos seus lucros.
Além disso, a noção de uma crise global homogênea do capitalismo passa por alto as profundas diferenças em desempenho e condições entre países, classes e grupos etários.

Manobras ideológicas – Luiz Gonzaga Belluzzo

Na Carta Capital

Reverenciado jornal de negócios e economia, o Financial -Times -dedicou-se a especular os destinos do capitalismo depois da crise que sacudiu o planeta. Publicada ao longo da semana, a série Capitalism in Crisis -reúne artigos e comentários de empresários, -banqueiros, políticos e economistas.

O jornal discorda dos que pretendem abolir a palavra capitalismo de seu dicionário. Não aceita a parolagem de ideólogos e fanzocas que executam contorcionismos conceituais para evitar a conexão entre a crise e o capitalismo. Para essa turma, imagino, a derrota do socialismo tornou inútil o conceito que designava o sistema triunfante. Trata-se de um estranho jogo de oposições em que a morte do adversário confere nova identidade ao sobrevivente. No baile de máscaras dos conservadores, o capitalismo é identificado à propensão humana natural para a troca e para a obtenção de vantagens materiais. São impulsos inatos do homem que a sociedade não pode sufocar. Não há alternativa, diria a senhora Thatcher.

Os adversários e detratores do capitalismo brotam como cogumelos no terreno adubado pela crise e pela impotência das lideranças democráticas. Nesses arraiais, a plasticidade desse modo de produção é surrupiada pela ideia de que afinal ele é sempre o mesmo e seu destino inexorável será a derrocada final, afirmada e reafirmada pelas velhas teorias do colapso. Os críticos à esquerda imaginam estar prestando homenagem à boa tradição de seu pensamento, cedendo passo a supostos automatismos e inevitabilidades que estariam implícitos na dinâmica do capitalismo.

Essas concepções ossificadas – à direita e à esquerda – deixam de examinar o capitalismo como uma forma histórica de relações econômicas, sociais e políticas que se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação. Sob o véu do determinismo, essas manobras ideológicas escondem as incertezas embutidas no jogo entre a crise da estrutura socioeconômica e as conjunturas marcadas pela intensificação da luta política. As manifestações dos ocupantes revelam que o mal-estar se dissemina pelo mundo desenvolvido. Naturalmente, o desconforto dos que deploram a desigualdade escandalosa e protestam contra a prepotência da finança não é causado apenas pela figuração das privações que o futuro lhes promete.

É preciso dizer mais. No capitalismo da falta de alternativas proclamado pela senhora Thatcher, as relações entre o político e o econômico foram ordenadas de modo a remover quaisquer obstáculos à expansão da grande empresa e do capital financeiro internacionalizado. O processo de mundialização da concorrência desencadeou uma nova onda de centralização de capitais e estimulou a dispersão espacial das funções produtivas e a terceirização das funções acessórias ao processo produtivo. Esse movimento foi acompanhado por uma intensa “apropriação” das decisões e informações pelo “cérebro” da finança. Os mercados de capitais tornaram-se, ao mesmo tempo, mais poderosos na formação das decisões e, contrariamente ao que se esperava, menos “eficientes” na definição dos critérios de avaliação do risco.

A nova finança e sua lógica se notabilizaram por sua capacidade de impor vetos às políticas macroeconômicas. A despeito do desemprego e da desigualdade escandalosa, as ações compensatórias dos governos sofrem fortes resistências das casamatas conservadoras. A globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos privilegiados, desarticulou a velha base tributária das políticas keynesianas, erigida sobre a prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.

A ação do Estado, particularmente sua prerrogativa fiscal, vem sendo contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado através do mercado capitalista. Os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios regionais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência dentro das sociedades. Mais um ardil da razão: o novo individualismo construiu sua base social na grande classe que emergiu da longa prosperidade e das políticas igualitárias que predominaram na era keynesiana.

Agora em escombros, as classes médias, sobretudo nos Estados Unidos, ziguezagueiam entre os fetiches do individualismo e as realidades do declíno social e econômico. A individualização do fracasso já não consegue ocultar o destino comum reservado aos derrotados pela desordem do sistema social. O reconhecimento da crise como um fenômeno social é inevitável. E esse reconhecimento torna-se mais disseminado quando o desemprego e a desigualdade prosperam em meio à teimosa celebração do sucesso de alguns indivíduos.

Democracia e capitalismo – Mino Carta

Na Carta Capital

No final de 2008 pareceu que o segundo muro havia ruído 19 anos após a queda do primeiro em Berlim. Este para selar o colapso do chamado socialismo real, aquele da main street do capitalismo para precipitar o enterro do neoliberalismo. Enganaram-se os esperançosos analistas, apressados. O célebre wall resistiu e o mercado prosseguiu no comando, perdão, o MERCADO, deus último e famigerado.

A hora trágica da incompatibilidade

Leio um texto exemplar de Carlo Azeglio Ciampi, límpido funcionário do Estado, ex-presidente do Banco Central da Itália, ex-primeiro-ministro, ex-presidente da República. Diz ele: “Desafiaram a lei moral que permite distinguir a comunidade humana da selva (…) fizeram da finança, aquela que, conforme os manuais de economia, está a serviço da produção, da troca, do desenvolvimento, uma selva onde se satisfazem apetites ferinos, onde impera a lei não escrita do desprezo por todos os valores, afora o ganho, o sucesso, o poder”.

Ciampi fala de uma tormenta que dura há três décadas e confere ao capitalismo “um rosto desumano”. A crise global atiça, em diferentes instâncias, o debate sobre o estágio atual do capitalismo. Das lideranças das forças produtivas aos intelectuais de diversos calibres e aos analistas de publicações de alto nível, como The Economist, Foreign Affairs, Financial Times. Em questão, o modelo político e econômico ocidental, a partir de mudanças consolidadas. A globalização com seus efeitos mais recentes, por exemplo. Ou o galope do avanço tecnológico.

É do conhecimento até do mundo mineral que conseguimos globalizar a desgraça ao aprofundar os desequilíbrios entre ricos e pobres em todas as latitudes de uma forma bastante peculiar. Deixemos de lado o Brasil, reservado, como se diz de certos elementos de receitas culinárias. Sobram países pobres, ou mesmo paupérrimos, e que continuam como tais, e países ricos cada vez mais empobrecidos. A constatação inevitável nos leva a validar a tese de que a riqueza foi transferida para algumas corporações e seus mandachuvas. São eles os donos do mundo. A senhora Merkel, o senhor Sarkô, tentam se dar ares de superioridade, mas não convencem.

É a vitória dos especuladores e de -suas artimanhas, e não era com isso que sonhava Adam Smith. Ou, muito tempo antes, o banqueiro genovês que financiou a construção dos barcos destinados ao transporte das tropas da Primeira Cruzada. As consequências do neoliberalismo, deste selvagem fundamentalismo, não põem em xeque somente o sistema econômico mundial, mas também a própria democracia, a qual não se satisfaz com a -liberdade para buscar a igualdade. Ao menos, a igualdade de oportunidades.

O mundo mineral continua a confirmar o senhor De La Palisse. O neoliberalismo promove o predador espertalhão, ou, por outra, a lei da selva, a acentuar a desigualdade. E onde fica a democracia? Daí a preocupação de quem ainda a considera indispensável à realização de uma sociedade que se pretenda justa. Chegou a hora de retirar o Brasil da reserva em que me permiti colocá-lo, à espera de completar a receita. O Brasil tende a sofrer menos com a crise, talvez muito menos, do que a turma outrora seleta do ex-Primeiro Mundo.

O País deu e dá importantes passos à frente nos últimos nove anos. Começa finalmente a aproveitar suas extraordinárias potencialidades, os generosíssimos presentes da natureza, graças a governos contrariados pela desigualdade. Como haveria de ser, aliás, todo capitalista consciente das suas responsabilidades de cidadão de uma nação democrática. Podemos crer que, de fato, somos uma nação democrática?

O Brasil é, a seu modo, um caso à parte, como alguns outros países. Carecemos da passagem pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. A dita elite brasileira é uma das mais atrasadas do mundo. Nunca usufruímos de um Estado de Bem-Estar Social e os sistemas da indiscutível atribuição estatal, educação, saúde e transporte público, são além de bisonhos. São Paulo tem a segunda maior frota de helicópteros do mundo e uma enorme área do País não conta com saneamento básico. Nesta moldura, a democracia há de lutar bravamente para se afirmar.

A vantagem quem sabe esteja no seguinte ponto: a democracia perde terreno para tantos que a conheceram e praticaram, nós temos largo espaço à frente para conquistá-la.