
Hoje na Folha de S. Paulo
CARLOS VELLOSO
A greve de policiais militares
A Constituição proíbe a greve aos PMs; homens que portam armas, se não estiverem submetidos à hierarquia, tornam-se fonte de insegurança
A greve de policiais militares preocupa. Afinal, homens que portam armas, e isso ocorre porque são responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (Constituição Federal, art. 144), não podem fazer greve, como expressamente dispõe a Carta da República.
A Constituição, art. 39, cuida dos servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. E, no art. 42, dos servidores militares estaduais.
Aos militares dos Estados, no ponto que interessa, aplicam-se-lhes disposições do art. 142, § 3º, da Lei Maior, por força do disposto no § 1º do art. 42. Estabelece-se que “ao militar são proibidas a sindicalização e a greve” (art. 142, § 3º, IV).
Ou seja, militar, seja das Forças Armadas, seja das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros estaduais, das forças auxiliares e das reservas do Exército (C.F., art. 144, § 6º), não pode fazer greve. A proibição tem razão de ser.
É que, conjuntamente com a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal e as polícias civis, responsabilizam-se, diretamente, pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, cada uma dessas instituições agindo no seu campo próprio de atuação (C.F., art. 144, I a V e §§).
Vale ressaltar que, tal como acontece com as Forças Armadas, as polícias e os corpos de bombeiros militares são organizados com base na hierarquia e na disciplina (C.F., artigos 42 e 142).
E isso se justifica: instituições armadas, homens que portam armas, se não estiverem submetidos à disciplina e à hierarquia, viram bandos armados. As armas a eles confiadas, para a manutenção da ordem pública e da incolumidade das pessoas, passam a ser fonte de insegurança. E foi justamente isso o que vimos na greve dos policiais militares da Bahia.
Li que houve quem afirmasse que o direito de greve estaria assegurado aos militares estaduais como um direito fundamental.
Que nos perdoem, mas esse “achismo” jurídico chega a ser “chutanismo”. A Constituição não assegura aos militares federais e estaduais o direito de greve. Ao contrário, proíbe, expressamente.
E mesmo o direito de greve dos servidores civis não está no capítulo dos direitos individuais, mas no da administração pública, art. 37, VI. Ele “será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”, lei ainda inexistente.
Os governantes devem compreender que é preciso cumprir, com rigor, a lei e a Constituição. O ministro Paulo Brossad, que sabe mais do que o direito, costumava dizer, no STF, que algumas autoridades temem ser tidas como autoritárias só por cumprir a lei.
O certo, entretanto, é que o seu não cumprimento gera insegurança. E fora da lei não há salvação, sentenciou Rui Barbosa.
De outro lado, é necessário que os governantes reconheçam que o salário pago aos policiais militares chega a ser, em certos Estados, irrisório. Essa situação deve ser vista com atenção. Ora, a segurança pública é da maior importância. A população não terá segurança se não remunerados, condignamente, os seus responsáveis diretos, os policiais militares e civis.
Penso que a PEC 300, que estabelece um piso salarial dos policiais, deve, com os aperfeiçoamentos necessários, ser considerada, instituindo a União um fundo para complementação de tais salários.
Esclareça-se que, quanto às polícias civil e militar do Distrito Federal, são elas mantidas pela União (C.F., art. 21, XIV). E o Distrito Federal arrecada impostos estaduais e municipais. Certo é que, tendo em vista a relevância da segurança pública, dela deve participar a União, em escala maior.
CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO, 76, advogado, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e da PUC-MG, foi presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral
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MARCUS ORIONE
Constituição e princípios
Uma leitura constitucional que leva em consideração a importância da polícia no Estado de direito não pode ser jamais contra a greve dos PMS
Há alguns anos, teci, enquanto jurista, digressões a respeito da greve dos policiais civis (“A viabilidade constitucional da greve”, nesta Folha, no dia 15 de novembro de 2008). Atualizarei a leitura, sendo que, para a presente situação, certas incursões ali feitas podem ser aproveitadas e outras devem ser adequadas à hipótese ou revistas.
Consigno que, acredito, não farei a interpretação que será a dominante. Registro que, no entanto, trata-se de uma leitura conservadora nos moldes do direito.
Uma Constituição é um documento político, que inaugura a estrutura do Estado. E, sob essa perspectiva, a interpretação de qualquer dispositivo constitucional não pode ser literal, mas sistemática e à luz de princípios, de sorte a mitigar os conflitos que estão presentes no seu bojo.
Isso não poderia ser diferente quanto ao disposto no artigo 42, parágrafo 1º da Constituição, que versa sobre restrição às greves dos policiais militares dos Estados.
No caso, há um aparente conflito entre segurança pública e direito de greve de uma classe trabalhadora. Não há que se enfraquecer nunca qualquer um dos dois direitos, já que ambos interessam a uma sociedade melhor.
As forças policiais são mantenedoras da ordem propagada pelo Estado de direito. Aliás, alimentado pelo medo e por falta de outras políticas públicas, é conhecido o clamor geral por segurança pública -com o qual posso não concordar, mas que é fato.
Não é de se crer que essa sociedade queira uma polícia desprovida de recursos para o cumprimento de sua função. É muito fácil enviar, a preço baixo, alguém para manter a ordem, arriscando a própria vida.
Portanto, uma leitura constitucional que leva em consideração a importância dessa corporação na preservação do tipo de democracia instaurada pelo Estado de direito não poderia jamais ser contra a greve dos policiais militares.
Registre-se que o movimento grevista implica a defesa não do interesse específico de uma categoria. Como em todas as greves no serviço público, defende-se o melhor atendimento de uma política pública posta na própria Constituição.
Além disto, qualquer interpretação da Constituição tem como vetor a dignidade da pessoa humana, o que deve ser considerado em favor da greve, em vista do alto risco de exposição do policial.
No entanto, o mais importante é que a greve dos policiais militares na Bahia desnuda o atual Estado democrático de direito, evidenciando as suas contradições.
De um lado, uma sociedade que, com medo, precisa da polícia. De outro, governantes que não oferecem políticas sociais adequadas e que nem conseguem realizar o que prometem em seu lugar: uma política de segurança pública decente.
De um lado, líderes grevistas com mandados de prisão decretados. De outro, um governador ex-sindicalista que insiste na prisão das lideranças. De um lado, os policiais, em geral convocados para cumprir ordens emanadas de poderes do Estado, enquanto sua força repressiva. De outro lado, os mesmos policiais, ora grevistas, confrontados pela repressão do Exército.
Tais contradições revelam que há uma profunda tensão no atual Estado democrático de direito -da qual simples interpretações constitucionais não darão conta.
Espera-se que, pela vivência da greve, os policiais consigam entender a equação envolvendo Estado de direito e relações de trabalho, para que, no futuro, possam conformar, cada vez mais, sua atuação à lógica dos direitos humanos.
MARCUS ORIONE, 47, doutor e livre-docente, é professor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social e da concentração em direitos humanos da pós-graduação da Faculdade de Direito da USP
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