Voto do então ministro do STF, Eros Grau, desmente governo Beto Richa com relação ao Teatro Guaíra: OS é privatização!

TeatroGuairaBAIXA

O governo Beto Richa (PSDB) e a direção do Teatro Guaíra vêm dizendo que o repasse da gestão do Teatro para uma entidade do Terceiro Setor qualificada como organização social – OS não é privatização. Veja a nota, clique aqui.

É MENTIRA!

O então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, em 2007, proferiu voto pela inconstitucionalidade do modelo e deixou claro que as parcerias da Administração Pública por meio de contratos de gestão com OSs é privatização!

Disse Eros Grau:

Também o são [inconstitucionais] o artigo 5º – na medida em que coloca sob um indefinido e difuso regime de “parceria” o cumprimento de função (= dever-poder) do Estado – e o artigo 20, que prevê a criação de um ‘Programa Nacional de Publicização -PNP’, cujo objetivo, bem ao contrário do que o nome (com sarcasmo?) pretenderia indicar, é a privatização de funções estatais. Dessas funções não se pode demitir o Estado sem agressão ao disposto nos artigos 1º, 3º, 215, 218 e 225 da Constituição do Brasil

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, talvez a maior jurista do Direito Administrativo brasileiro, entende que podemos chamar de “privatização em sentido amplo” qualquer iniciativa de “redução do tamanho do Estado”, e inclui entre os exemplos os contratos de gestão com as organizações sociais – OS (Parcerias na Administração Pública, 2009, 7ª ed., editora Atlas, p. 5-8.).

Em quem confiar?

Meu livro Terceiro Setor e as Parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica (Fórum, 2ª ed., 2010), fruto da minha Dissertação de Mestrado em Direito do Estado pela UFPR Uma análise crítica do ideário do “Terceiro Setor” no contexto neoliberal e as Parcerias entre a Administração Pública e Sociedade Civil Organizada no Brasil, analisam a questão.

Veja a transcrição do voto de Eros Grau do que foi discutido na época, conforme informativo do próprio STF:

T R A N S C R I Ç Õ E SCom a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.

Lei 9.637/98: Organizações Sociais (Transcrições)

ADI 1923 MC/DF*

RELATOR P/ O ACÓRDÃO: MIN. EROS GRAU

VOTO-VISTA: MIN. GILMAR MENDES

A presente ação direta de inconstitucionalidade foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores – PT e pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, contra a Lei n° 9.637, de 15 de maio de 1998, e também contra o inciso XXIV do art. 24 da Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993, com a redação conferida pela Lei n° 9.648, de 27 de maio de 1998.
A Lei n° 9.637/1998 dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.
O art. 24, inciso XXIV, da Lei n° 8.666/93 trata da dispensa de licitação para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais qualificadas, no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.
O Relator, Ministro Ilmar Galvão, votou pelo indeferimento da medida cautelar, no que foi acompanhado pelo Ministro Nelson Jobim, em voto-vista. Também votaram pelo indeferimento da liminar os Ministros Moreira Alves, Néri da Silveira e Sepúlveda Pertence, ainda que apenas em relação ao art. 1º da lei, quanto à possibilidade de o Estado firmar contratos de gestão com as denominadas organizações sociais para prestação de serviços públicos na área de saúde.
O Ministro Eros Grau abriu a divergência. Em voto-vista proferido em 2 de fevereiro deste ano (2007), Eros Grau entendeu que a lei impugnada padece de “inconstitucionalidade chapada”, acentuando a violação à regra da licitação e ao princípio da igualdade. Está consignado, em seu voto, o seguinte:

“Os quatro primeiros artigos prestam-se a identificar as ‘organizações sociais’, pessoas jurídicas de direito privado que celebrarão contratos de gestão com o ‘Poder Público’. A definição de contrato de gestão como ‘instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social’ causa espanto. Pois a de número 9.637 é uma lei que sem sombra de dúvida muito inova a ciência do direito: seu artigo 5º define como contrato não o vínculo, mas seu instrumento… Seja como for, a celebração desse contrato de gestão com o Poder Público habilitará a organização ao desfrute de certas vantagens. Mais do que vantagens, favores desmedidos, visto que essa contratação não é antecedida de licitação.
Uma das inovações ao ordenamento jurídico aportada pela lei está em que às organizações sociais poderão ser destinados recursos orçamentários e bens públicos móveis e imóveis com dispensa de licitação (art. 12 e parágrafos). Para recebê-los, a organização social, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello, ‘não necessita demonstrar habilitação técnica ou econômico-financeira de qualquer espécie. Basta a concordância do Ministro da área (ou mesmo do titular do órgão que a supervisione)…’.
Mas não é só. É facultada ainda ao Poder Executivo a ‘cessão especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a origem’ (arts. 13 a 15). Uma coisa nunca vista.”

Prossegue o Ministro Eros Grau em seu voto:

“Dir-se-á, pois, que uma discriminação será arbitrária quando ‘não seja possível encontrar, para a diferenciação legal, alguma razão adequada que surja da natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível’.
Pois exatamente isso se dá na hipótese da Lei n. 9.637/98: não há razão nenhuma a justificar a celebração de contrato de gestão com as organizações sociais, bem assim a destinação de recursos orçamentários e de bens públicos móveis e imóveis a elas, tudo com dispensa de licitação. Mais grave ainda a afrontosa agressão ao princípio da licitação quando se considere que é facultada ao Poder Executivo a ‘cessão especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a origem’. Inconstitucionalidade chapada, como diria o Ministro Pertence, inconstitucionalidade que se manifesta também no preceito veiculado pelo inciso XXIV do artigo 24 da Lei n. 8.666/93 com a redação que lhe foi conferida pelo artigo 1º da Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1998.
Mas não apenas esses preceitos – o artigo 1º da Lei n. 9.648/98 e os artigos 11 a 15 da Lei n. 9.637/98 – são inconstitucionais. Também o são o artigo 5º – na medida em que coloca sob um indefinido e difuso regime de ‘parceria’ o cumprimento de função (= dever-poder) do Estado – e o artigo 20, que prevê a criação de um ‘Programa Nacional de Publicização -PNP’, cujo objetivo, bem ao contrário do que o nome (com sarcasmo?) pretenderia indicar, é a privatização de funções estatais. Dessas funções não se pode demitir o Estado sem agressão ao disposto nos artigos 1º, 3º, 215, 218 e 225 da Constituição do Brasil.”

Eros Grau então concluiu pela concessão da liminar para suspender a vigência do art. 1º da Lei n° 9.648/98, e dos arts. 5º, 11 a 15 e 20 da Lei n° 9.637/98.
O Ministro Joaquim Barbosa acompanhou o voto de Eros Grau, com exceção dos fundamentos atinentes ao art. 1º da lei, objeto de voto de seu antecessor, o Ministro Moreira Alves.
O Ministro Ricardo Lewandowski votou no sentido de se deferir a medida cautelar apenas em relação ao art. 1º da Lei n° 9.648/98.
Pedi vista dos autos para analisar melhor o tema que, neste momento, circunscreve-se à medida cautelar. Ressalto que tal análise não abrange o art. 1º da Lei n° 9.637/98, objeto de voto proferido por meu antecessor, o Ministro Néri da Silveira.
Passo a essa análise, mas não posso deixar de lembrar, antes disso, que o julgamento desta medida cautelar iniciou-se em 24 de junho de 1999. Estamos, portanto, há exatos 8 anos imersos nesse juízo que, há muito, deixou de ser meramente cautelar. A densidade dos votos aqui proferidos o comprova.
As normas questionadas datam do ano de 1998, estando em vigor, portanto, há quase 10 anos. Estamos, como se vê, diante de um típico caso de periculum in mora inverso.
Ademais, não consigo vislumbrar a presença das inconstitucionalidades apontadas pelo requerente, pois tenho em mente as razões que demonstrarei a seguir.

I – As Organizações Sociais no contexto da Reforma do Estado no Brasil

As Organizações Sociais inserem-se num contexto de Reforma do Estado brasileiro, iniciada na década de noventa e que ainda está sendo implementada.
A Declaração de Madrid, aprovada em 14 de outubro de 1998 pelo Conselho Diretor do Centro Latino Americano de Administração para o Desenvolvimento – CLAD, composto pelas máximas autoridades governamentais responsáveis pela modernização da Administração Pública e da Reforma do Estado em 25 países membros, descreve o contexto em que se insere a Reforma do Estado brasileiro, ou seja, a Reforma Gerencial dos Estados latino-americanos.
A Reforma do Estado, segundo essa declaração, tornou-se o tema central da agenda política mundial. Não se trata de uma resposta neoliberal à crise do Estado intervencionista; ou seja, a reforma não visa à redução drástica do tamanho do Estado e não prima pela predominância do mercado. Ao contrário, ela parte da constatação de que a solução para a crise do Estado não estaria no desmantelamento do aparelho estatal, mas em sua reconstrução. A Reforma Gerencial do Estado pressupõe uma modificação estrutural do aparelho estatal, não podendo ser confundida com mera implementação de novas formas de gestão. Como consta da declaração, “trata-se de construir um Estado para enfrentar os novos desafios da sociedade pós-industrial, um Estado para o século XXI, que, além de garantir o cumprimento dos contratos econômicos, deve ser forte o suficiente para assegurar os direitos sociais e a competitividade de cada país no cenário internacional. Busca-se, desse modo, uma terceira via entre o laissez faire neoliberal e o antigo modelo social-burocrático de intervenção estatal”.
A Reforma Gerencial do Estado não faz parte apenas da pauta político-administrativa brasileira, mas tem sido implementada em diversos países, principalmente no contexto latino-americano, com vistas a tornar a gestão pública mais ágil e flexível frente aos novos desafios de nossa sociedade complexa. Conforme a declaração de Madrid, “o modelo gerencial – de Reforma do Estado – tem como inspiração as transformações organizacionais ocorridas no setor privado, as quais têm alterado a forma burocrática-piramidal de administração, flexibilizando a gestão, diminuindo os níveis hierárquicos e, por conseguinte, aumentando a autonomia de decisão dos gerentes – daí o nome gerencial. Com estas mudanças, saiu-se de uma estrutura baseada em normas centralizadas para outra ancorada na responsabilização dos administradores, avaliados pelos resultados efetivamente produzidos. Este novo modelo busca responder mais rapidamente às grandes mudanças ambientais que acontecem na economia e na sociedade contemporâneas. (…) Em suma – afirma a declaração – ‘o governo não pode ser uma empresa, mas pode se tornar mais empresarial’, isto é, pode ser mais ágil e flexível frente às gigantescas mudanças ambientais que atingem a todas as organizações.”
No Brasil, a redefinição do papel do Estado e sua reconstrução têm importância decisiva em razão de sua incapacidade para absorver e administrar com eficiência todo o imenso peso das demandas que lhe são dirigidas, sobretudo na área social. O esgotamento do modelo estatal intervencionista, a patente ineficácia e ineficiência de uma administração pública burocrática baseada em um vetusto modelo weberiano, assim como a crise fiscal, todos observados em grande escala na segunda metade da década de oitenta, tornaram imperiosa a reconstrução do Estado brasileiro nos moldes já referidos de um Estado gerencial, capaz de resgatar sua autonomia financeira e sua capacidade de implementar políticas públicas.
Trata-se, portanto, de uma redefinição do papel do Estado, que deixa de ser agente interventor e produtor direto de bens e serviços para se concentrar na função de promotor e regulador do desenvolvimento econômico e social.
Assim, a Reforma do Estado brasileiro envolveu, num primeiro momento ou numa primeira geração de reformas, alguns programas e metas, voltadas primordialmente para o mercado, tais como a abertura comercial, o ajuste fiscal, a estabilização econômica, a reforma da previdência social e a privatização de empresas estatais, criação de agências reguladoras, quase todas já implementadas, ainda que parcialmente, na década de noventa.
Uma vez eliminado o perigo hiperinflacionário e efetivada a estabilização da economia, o desafio atual está na formulação e efetivação de políticas públicas voltadas para o social, primordialmente nas áreas de saúde, moradia e educação. Constatada, no entanto, a incapacidade do aparato estatal para dar conta de todas as demandas sociais, o foco passou a ser a Reforma do Aparelho do Estado.
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado – elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado, do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995)- contém os programas e metas para uma reforma destinada à transição de “um tipo de administração pública burocrática, rígida e ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno, para uma administração pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendimento do cidadão”.
Dentre esses programas e metas, assume especial importância o programa de publicização, que constitui a “descentralização para o setor público não-estatal da execução de serviços que não envolvem o exercício do poder de Estado, mas devem ser subsidiados pelo Estado, como é o caso dos serviços de educação, saúde, cultura e pesquisa científica”. Assim consta do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado:

“A reforma do Estado envolve múltiplos aspectos. O ajuste fiscal devolve ao Estado a capacidade de definir e implementar políticas públicas. Através da liberalização comercial, o Estado abandona a estratégia protecionista da substituição de importações. O programa de privatizações reflete a conscientização da gravidade da crise fiscal e da correlata limitação da capacidade do Estado de promover poupança forçada através das empresas estatais. Através desse programa transfere-se para o setor privado a tarefa da produção que, em princípio, este realiza de forma mais eficiente. Finalmente, através de um programa de publicização, transfere-se para o setor público não-estatal a produção dos serviços competitivos ou não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle. Deste modo o Estado reduz seu papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços sociais como educação e saúde, que são essenciais para o desenvolvimento, na medida em que envolvem investimento em capital humano; para a democracia, na medida em que promovem cidadãos; e para uma distribuição de renda mais justa, que o mercado é incapaz de garantir, dada a oferta muito superior à demanda de mão de obra não-especializada. Como promotor desses serviços o Estado continuará a subsidiá-los, buscando, ao mesmo tempo, o controle social direto e a participação da sociedade.”

O programa de publicização, portanto, permite ao Estado compartilhar com a comunidade, as empresas e o Terceiro Setor a responsabilidade pela prestação de serviços públicos como os de saúde e educação. Trata-se, em outros termos, de uma parceria entre Estado e sociedade na consecução de objetivos de interesse público, com maior agilidade, eficiência.
As Organizações Sociais correspondem à implementação do Programa Nacional de Publicização-PNP e, dessa forma, constituem estratégia central da Reforma do Estado brasileiro.

II – As Organizações Sociais no contexto do Programa Nacional de Publicização-PNP da Reforma do Aparelho do Estado: a transferência ao setor público não-estatal da prestação de serviços não-exclusivos do Estado

O Projeto das Organizações Sociais, no âmbito do Programa Nacional de Publicização-PNP, foi traçado inicialmente pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que previu a elaboração de um de projeto de lei que permitisse “a ‘publicização’ dos serviços não-exclusivos do Estado, ou seja, sua transferência do setor estatal para o público não-estatal”.
Assim, segundo o Plano Diretor, “o Projeto das Organizações Sociais tem como objetivo permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, nos quais não existe o exercício do Poder de Estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do Estado, forem realizados pelo setor público não-estatal”.
Os contornos jurídicos das Organizações Sociais foram delimitados no referido Plano Diretor, da seguinte forma:

“Entende-se por ‘organizações sociais’ as entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder Executivo, obtêm autorização legislativa para celebrar contrato de gestão com esse poder, e assim ter direito à dotação orçamentária. As organizações sociais terão autonomia financeira e administrativa, respeitadas as condições descritas em lei específica como, por exemplo, a forma de composição de seus conselhos de administração, prevenindo-se, deste modo, a privatização ou a feudalização dessas entidades. Elas receberão recursos orçamentários, podendo obter outros ingressos através da prestação de serviços, doações, legados, financiamentos, etc. As entidades que obtenham a qualidade de organizações sociais gozarão de maior autonomia administrativa, e, em compensação, seus dirigentes terão maior responsabilidade pelo seu destino. Por outro lado, busca-se através das organizações sociais uma maior participação social, na medida em que elas são objeto de um controle direto da sociedade através de seus conselhos de administração recrutado no nível da comunidade à qual a organização serve. Adicionalmente se busca uma maior parceria com a sociedade, que deverá financiar uma parte menor mas significativa dos custos dos serviços prestados. A transformação dos serviços não-exclusivos estatais em organizações sociais se dará de forma voluntária, a partir da iniciativa dos respectivos ministros, através de um Programa Nacional de Publicização. Terão prioridade os hospitais, as universidades e escolas técnicas, os centros de pesquisa, as bibliotecas e os museus. A operacionalização do programa será feita por um Conselho Nacional de Publicização, de caráter ministerial.”

As Organizações Sociais, portanto, traduzem um modelo de parceria entre o Estado e a sociedade para a consecução de interesses públicos comuns, com ampla participação da comunidade. De produtor direto de bens e serviços públicos o Estado passa a constituir o fomentador das atividades publicizadas, exercendo, ainda, um controle estratégico de resultados dessas atividades. O contrato de gestão constitui o instrumento de fixação e controle de metas de desempenho que assegurem a qualidade e a efetividade dos serviços prestados à sociedade. Ademais, as Organizações Sociais podem assimilar características de gestão “cada vez mais próximas das praticadas no setor privado, o que deverá representar, entre outras vantagens: a contratação de pessoal nas condições de mercado; a adoção de normas próprias para compras e contratos; e ampla flexibilidade na execução do seu orçamento”.
Decorrente do projeto traçado no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), o Programa Nacional de Publicização-PNP foi então criado pela Lei n° 9.637/1998.

III – A Lei das Organizações Sociais (Lei n° 9.637/1998)

A Lei n° 9.637, de 15 de maio de 1998, questionada na presente ação direta, cria o Programa Nacional de Publicização e prescreve as normas para a qualificação de entidades como organizações sociais.
Em seu primeiro artigo, a referida lei dispõe que o “Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”.
A implementação de uma organização social pressupõe duas ações complementares: a) a publicização de atividades executadas por entidades estatais, as quais serão extintas; e b) a absorção dessas atividades por entidades privadas, que serão qualificadas como organização social (OS), por meio de contrato de gestão.
.
III.1 – O processo de publicização

A Lei n° 9.637/98, em seu art. 20, dispõe sobre a criação do Programa Nacional de Publicização – PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas em seu art. 1o, por organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei, observadas as seguintes diretrizes: I – ênfase no atendimento do cidadão-cliente; II – ênfase nos resultados qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados; III – controle social das ações de forma transparente.
Assim, a publicização se refere às atividades (não-exclusivas de Estado) e não às entidades. No processo de publicização, determinadas entidades estatais são extintas e suas atividades são publicizadas, ou seja, são absorvidas por entidades privadas qualificadas como OS, de acordo com os critérios especificados na lei e mediante contrato de gestão.
A própria Lei n° 9.637/98 tratou de extinguir entidades estatais, autorizando o Poder Executivo a qualificar como organizações sociais as pessoas jurídicas de direito privado indicadas em seu Anexo I, permitindo, ainda, a absorção das atividades desempenhadas pelas entidades extintas por essas novas entidades qualificadas como OS:

“Art. 21. São extintos o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, integrante da estrutura do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, e a Fundação Roquette Pinto, entidade vinculada à Presidência da República.
§ 1o Competirá ao Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado supervisionar o processo de inventário do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, a cargo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, cabendo-lhe realizá-lo para a Fundação Roquette Pinto.
§ 2o No curso do processo de inventário da Fundação Roquette Pinto e até a assinatura do contrato de gestão, a continuidade das atividades sociais ficará sob a supervisão da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.”
§ 3o É o Poder Executivo autorizado a qualificar como organizações sociais, nos termos desta Lei, as pessoas jurídicas de direito privado indicadas no Anexo I, bem assim a permitir a absorção de atividades desempenhadas pelas entidades extintas por este artigo.
§ 4o Os processos judiciais em que a Fundação Roquette Pinto seja parte, ativa ou passivamente, serão transferidos para a União, na qualidade de sucessora, sendo representada pela Advocacia-Geral da União.”

ANEXO I
(Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998)

ÓRGÃO E ENTIDADE EXTINTOS
Laboratório Nacional de Luz Síncrotron
ENTIDADE AUTORIZADA A SER QUALIFICADA
Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron – ABTLus
REGISTRO CARTORIAL
Primeiro Ofício de Registro de Títulos e Documentos da Cidade de Campinas – SP, nº de ordem 169367, averbado na inscrição nº 10.814, Livro A-36, Fls 01.

ÓRGÃO E ENTIDADE EXTINTOS
Fundação Roquette Pinto
ENTIDADE AUTORIZADA A SER QUALIFICADA
Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP
REGISTRO CARTORIAL
Registro Civil das Pessoas Jurídicas, Av. Pres. Roosevelt, 126, Rio de Janeiro – RJ, apontado sob o nº de ordem 624205 do protocolo do Livro A nº 54, registrado sob o nº de ordem 161374 do Livro A nº 39 do Registro Civil das Pessoas Jurídicas.

A Lei n° 9.637/98 estabelece, ainda, que as extinções e a absorção de atividades e serviços por organizações sociais devem observar os seguintes preceitos (art. 22):

I – os servidores integrantes dos quadros permanentes dos órgãos e das entidades extintos terão garantidos todos os direitos e vantagens decorrentes do respectivo cargo ou emprego e integrarão quadro em extinção nos órgãos ou nas entidades indicados no Anexo II, sendo facultada aos órgãos e entidades supervisoras, ao seu critério exclusivo, a cessão de servidor, irrecusável para este, com ônus para a origem, à organização social que vier a absorver as correspondentes atividades, observados os §§ 1o e 2o do art. 14;
II – a desativação das unidades extintas será realizada mediante inventário de seus bens imóveis e de seu acervo físico, documental e material, bem como dos contratos e convênios, com a adoção de providências dirigidas à manutenção e ao prosseguimento das atividades sociais a cargo dessas unidades, nos termos da legislação aplicável em cada caso;
III – os recursos e as receitas orçamentárias de qualquer natureza, destinados às unidades extintas, serão utilizados no processo de inventário e para a manutenção e o financiamento das atividades sociais até a assinatura do contrato de gestão;
IV – quando necessário, parcela dos recursos orçamentários poderá ser reprogramada, mediante crédito especial a ser enviado ao Congresso Nacional, para o órgão ou entidade supervisora dos contratos de gestão, para o fomento das atividades sociais, assegurada a liberação periódica do respectivo desembolso financeiro para a organização social;
V – encerrados os processos de inventário, os cargos efetivos vagos e os em comissão serão considerados extintos;
VI – a organização social que tiver absorvido as atribuições das unidades extintas poderá adotar os símbolos designativos destes, seguidos da identificação “OS”.

Cabe ao Poder Executivo qualificar pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações Sociais, para o exercício de atividades dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde. O art. 2º da Lei n° 9.637/98 estabelece os requisitos específicos para que as entidades privadas habilitem-se à qualificação como organização social:

“I – comprovar o registro de seu ato constitutivo, dispondo sobre:

a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de atuação;
b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes financeiros no desenvolvimento das próprias atividades;
c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei;
d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;
e) composição e atribuições da diretoria;
f) obrigatoriedade de publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de gestão;
g) no caso de associação civil, a aceitação de novos associados, na forma do estatuto;
h) proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento, retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade;
i) previsão de incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados;
II – haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e Reforma do Estado.”

Segundo a lei, as entidades qualificadas como organizações sociais são declaradas como entidades de interesse social e utilidade pública, para todos os efeitos legais (art. 11).
De acordo com o art. 22, § 1º, a absorção, pelas organizações sociais, das atividades das entidades extintas, efetivar-se-á mediante celebração de contrato de gestão.

III.2 – O contrato de gestão

No conceito estabelecido pela Lei n° 9.637/98 (art. 5º), o contrato de gestão é o instrumento firmado entre o Poder Público (por intermédio de seus Ministérios) e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades publicizadas.
O contrato de gestão, dessa forma, discriminará as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização social (art. 6º).
A principal função do contrato de gestão é a fixação de metas, assim como a definição dos mecanismos de avaliação de desempenho e controle de resultados das atividades da organização social. Assim, deverá o contrato de gestão conter: I – especificação do programa de trabalho proposto pela organização social, a estipulação das metas a serem atingidas e os respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e produtividade; II – a estipulação dos limites e critérios para despesa com remuneração e vantagens de qualquer natureza a serem percebidas pelos dirigentes e empregados das organizações sociais, no exercício de suas funções (art. 7º).
Assim, dispõe a lei que a organização social apresentará ao órgão ou entidade do Poder Público supervisora signatária do contrato, ao término de cada exercício ou a qualquer momento, conforme recomende o interesse público, relatório pertinente à execução do contrato de gestão, contendo comparativo específico das metas propostas com os resultados alcançados, acompanhado da prestação de contas correspondente ao exercício financeiro (art. 8º, § 1º). Os resultados atingidos com a execução do contrato de gestão devem ser analisados, periodicamente, por comissão de avaliação, indicada pela autoridade supervisora da área correspondente, composta por especialistas de notória capacidade e adequada qualificação (art. 8º, § 2º).
Dispõe a lei, ainda, que às organizações sociais poderão ser destinados recursos orçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento do contrato de gestão.
Quanto aos mecanismos de controle sobre a utilização desses recursos e bens públicos pela organização social, a lei prescreve o seguinte:

“Art. 9o Os responsáveis pela fiscalização da execução do contrato de gestão, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública por organização social, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.
Art. 10. Sem prejuízo da medida a que se refere o artigo anterior, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público, havendo indícios fundados de malversação de bens ou recursos de origem pública, os responsáveis pela fiscalização representarão ao Ministério Público, à Advocacia-Geral da União ou à Procuradoria da entidade para que requeira ao juízo competente a decretação da indisponibilidade dos bens da entidade e o seqüestro dos bens dos seus dirigentes, bem como de agente público ou terceiro, que possam ter enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.
§ 1o O pedido de seqüestro será processado de acordo com o disposto nos arts. 822 e 825 do Código de Processo Civil.
§ 2o Quando for o caso, o pedido incluirá a investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações mantidas pelo demandado no País e no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais.
§ 3o Até o término da ação, o Poder Público permanecerá como depositário e gestor dos bens e valores seqüestrados ou indisponíveis e velará pela continuidade das atividades sociais da entidade.”

Como se vê, a lei, ao contrário do que afirmam os requerentes, submete as Organizações Sociais a amplos mecanismos de controle interno e externo, este exercido pelo Tribunal de Contas. Ademais, não subtrai, como alegam os requerentes, qualquer função constitucional atribuída ao Ministério Público; ao contrário, a redação do art. 10 é clara ao prever que, havendo indícios fundados de malversação de bens ou recursos de origem pública, os responsáveis pela fiscalização deverão representar ao Ministério Público, à Advocacia-Geral da União ou à Procuradoria da entidade para que requeiram ao juízo competente a decretação da indisponibilidade dos bens da entidade e o seqüestro dos bens dos seus dirigentes, bem como de agente público ou terceiro, que possam ter enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.
Não se pode descartar, outrossim, na hipótese de enriquecimento ilícito ou outros atos que impliquem danos ao erário e violação a princípios da administração pública, a responsabilização político-administrativa dos executores do contrato de gestão, com base na Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/92).
A lei também prevê que o Poder Executivo poderá proceder à desqualificação da entidade como organização social, quando constatado o descumprimento das disposições contidas no contrato de gestão (art. 16). A desqualificação importará reversão dos bens permitidos e dos valores entregues à utilização da organização social, sem prejuízo de outras sanções cabíveis (art. 16, § 2º).
Ademais, deve-se enfatizar que o contrato de gestão constitui um instrumento de fixação e controle de metas de desempenho na prestação dos serviços. E, assim sendo, baseia-se em regras mais flexíveis quanto aos atos e processos, dando ênfase ao controle dos resultados. Por isso, compras e alienações submetem-se a outros procedimentos que não os de licitação com base na Lei n° 8.666/93, voltada para as entidades de direito público. Lembre-se, nesse ponto, que a própria Constituição autoriza a lei a criar exceções à regra da licitação (art. 37, inciso XXI). Nesse sentido, por exemplo, a Petrobrás, por ser empresa pública que realiza atividade econômica de risco, num âmbito de competição com outras empresas privadas do setor, não se submete à Lei n° 8.666/93, mas a um Regulamento de Procedimento Licitatório Simplificado aprovado pelo Decreto n° 2.745/98, do Presidente da República, o qual possui lastro legal no art. 67 da Lei n° 9.478/97.
Não vislumbro, portanto, qualquer das inconstitucionalidades apontadas pelos requerentes.

IV. A implementação do modelo de Organizações Sociais pelos Estados-membros

Desde o advento da Lei n° 9.637/98, que estabelece o modelo de Organizações Sociais a ser adotado no plano federal, diversos Estados da Federação implementaram seus próprios sistemas de gestão pública por meio de organizações sociais.
No Estado de São Paulo, por exemplo, foi editado o Decreto n° 43.493, de 29 de setembro de 1998, que dispõe sobre a qualificação das organizações sociais da área da cultura. É sabido que, hoje, o Museu da Pinacoteca de São Paulo funciona segundo o sistema das Organizações Sociais, mediante contrato de gestão firmado com a Secretaria de Estado da Cultura. Há notícia também de que, atualmente, seguem esse modelo o Memorial da Imigração, o Conservatório Musical de Tatuí, o MIS, o Museu de Arte Sacra, o Museu da Casa Brasileira e o Paço das Artes.
Também no Estado de São Paulo, a Lei Complementar n° 846, de 1998, regulamentou a parceria do Estado com entidades filantrópicas, qualificadas como Organizações Sociais, para prestação de serviços na área de saúde, mediante contrato de gestão firmado com a Secretaria de Estado da Saúde. Até o ano de 2005, já existiam 16 (dezesseis) serviços de saúde sob contrato de gestão, abrangendo atividades de internação, de atendimento ambulatorial, de atendimento de urgência e emergência, e a realização de atividades de apoio diagnóstico e terapêutico para pacientes externos aos hospitais. Entre o ano de 1999 e 2003, o número de internações cresceu significativamente, de 29.167 para 166.399 (número de saídas); assim também o volume de atividade ambulatorial, de 225.291, para 1.110.547 (número de consultas); e de atividade de urgência/emergência, de 1.001.773 para 1.459.793(número de pessoas atendidas); o que comprova o sucesso desse novo sistema de gestão.
Em Goiás, a Lei n° 15.503, de 28 de dezembro de 2005, dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais.
Em Minas Gerais, tem-se conhecimento do programa “Choque de Gestão Pública”, implementado pelo atual governo, o qual possui como uma de suas principais metas a publicização de atividades e serviços não-exclusivos do Estado, que ficarão a cargo de entidades privadas qualificadas como Organizações Sociais.
Em Santa Catarina, a Lei n° 12.929, de 4 de fevereiro de 2004, instituiu o Programa Estadual de Incentivo às Organizações Sociais, regulamentado pelo Decreto n° 3.294, de 15 de julho de 2005.
Na Bahia, instituiu-se o Programa Estadual de Organizações Sociais, por meio da Lei n° 8.647, de 29 de julho de 2003, regulamentada pelo Decreto n° 8.890, de 21 de janeiro de 2004.
Cito também as Leis de Sergipe (Lei n° 5.217/2003), Pernambuco (Lei n° 11.743/2000), Distrito Federal (Lei n° 2.415/1999), Espírito Santo (Lei Complementar n° 158/1999).

V. A experiência da Associação das Pioneiras Sociais (APS) – A Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor

Além da vasta legislação estadual atualmente existente sobre o tema das Organizações Sociais, o que comprova a larga aceitação e o sucesso desse novo modelo de gestão de serviços públicos, talvez um dos argumentos mais contundentes para afastar a alegada necessidade de concessão de medida cautelar nesta ação esteja na exemplar experiência da Associação das Pioneiras Sociais (APS), instituição gestora da Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor.
Como todos sabem, a Rede Sarah de Hospitais localizados nas cidades de Brasília, Salvador, São Luís e Belo Horizonte tem prestado serviços à população, na área de saúde do aparelho locomotor, de incomensurável valia. É de conhecimento geral que, hoje, a Rede Sarah de Hospitais constitui um exemplo, e uma referência nacional e internacional, de administração moderna e eficiente de serviços públicos na área de saúde, prestados à população de forma democrática e transparente.
A Associação das Pioneiras Sociais (APS) foi instituída, como Serviço Social Autônomo, de interesse coletivo e de utilidade pública, pela Lei n° 8.246, de 1991, com o objetivo de prestar assistência médica qualificada e gratuita a todos os níveis da população e de desenvolver atividades educacionais e de pesquisa no campo da saúde, em cooperação com o Poder Público (art. 1º).
Como ressalta Sabo Paes, a referida lei teve expresso propósito de testar um modelo novo de organização da assistência médico-hospitalar. Para tanto, utilizou-se, como parâmetro e referência, a experiência da Fundação das Pioneiras Sociais, fundação de direito privado, instituída em 1960, sediada no Distrito Federal e mantida pelo Poder Público para o atendimento à saúde. A lei extinguiu a Fundação das Pioneiras Sociais, cujo patrimônio foi incorporado ao da União pelo Ministério da Saúde e logo posto à administração do então criado Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais.
O contrato de gestão foi assinado no final do ano de 1991 entre os Ministérios da Saúde, Fazenda e Administração Federal, de um lado, e a Associação das Pioneiras Sociais (APS), de outro. Desde então, como ressalta Sabo Paes, a APS tem perseguido com determinação a implantação de elevados padrões éticos de comportamento funcional e administrativo instituídos pela Lei n° 8.246/91, de acordo com as decisões do Tribunal de Contas da União. A APS tem conseguido implementar as metas operacionais explicitadas no contrato de gestão após todos esses anos de existência.
Assim, como afirma Sabo Paes, “o caráter autônomo da gestão desse serviço de saúde, que oferece a todas as camadas da população a assistência médica gratuita e de qualidade, fez da APS a primeira instituição pública não estatal brasileira atuando como uma rede de hospitais públicos que prestam serviços de ortopedia e de reabilitação por meio de quatro unidades hospitalares localizadas em Brasília, Salvador, São Luís e Belo Horizonte, e tem o seu programa de trabalho plurianual calcado nos seguintes objetivos gerais: 1) prestar serviço médico qualificado e público na área da medicina do aparelho locomotor; 2) formar recursos humanos e promover a produção de conhecimento científico; 3) gerar informações nas áreas de epidemiologia, gestão hospitalar, controle de qualidade e de custos dos serviços prestados; 4) exercer ação educacional e preventiva visando à redução das causas das patologias atendidas pela Rede; 5) construir e implantar novas unidades hospitalares, expandindo o modelo gerencial e os serviços da Rede para outras regiões do país; e desenvolver tecnologia nas áreas de construção hospitalar, de equipamentos hospitalares e de reabilitação”.
O modelo de contrato de gestão estabelecido pela lei impugnada – Lei n° 9.637/98 – baseou-se amplamente nesse sistema de gestão instituído pela Lei n° 8.246/91.

VI. Considerações finais

Enfim, o modelo de gestão pública por meio de Organizações Sociais, instituído pela Lei n° 9.637/98, tem sido implementado ao longo de todo o país e as experiências bem demonstram que a Reforma da Administração Pública no Brasil tem avançado numa perspectiva promissora. Após uma história de burocracias, de ênfases nos atos e nos processos – que, reconheça-se, ainda não foi totalmente superada -, a Administração Pública no Brasil adentrou o século XXI com vistas aos resultados, à eficiência e, acima de tudo, à satisfação do cidadão.
A Lei n° 9.637/98 institui um programa de publicização de atividades e serviços não exclusivos do Estado – como o ensino, a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico, a proteção e preservação do meio ambiente, a cultura e a saúde -, transferindo-os para a gestão desburocratizada a cargo de entidades de caráter privado e, portanto, submetendo-os a um regime mais flexível, mais dinâmico, enfim, mais eficiente.
Esse novo modelo de administração gerencial realizado por entidades públicas, ainda que não-estatais, está voltado mais para o alcance de metas do que para a estrita observância de procedimentos. A busca da eficiência dos resultados, por meio da flexibilização de procedimentos, justifica a implementação de um regime todo especial, regido por regras que respondem a racionalidades próprias do direito público e do direito privado.
O fato é que o Direito Administrativo tem passado por câmbios substanciais e a mudança de paradigmas não tem sido compreendida por muitas pessoas. Hoje, não há mais como compreender esse ramo do direito desde a perspectiva de uma rígida dicotomia entre o público e o privado. O Estado tem se valido cada vez mais de mecanismos de gestão inovadores, muitas vezes baseados em princípios próprios do direito privado.
Nesse sentido, extraio das lições de Günther Teubner as premissas para se analisar o direito a partir de novos enfoques superadores da velha dicotomia público/privado:

“Não gostaria de sugerir apenas a rejeição da separação entre setor público e privado como uma simplificação grosseira demais da atual estrutura social, mas também proporia o abandono de todas as idéias de uma fusão de aspectos públicos e privados. Ao invés disso, a simples dicotomia público/privado significa que as atividades da sociedade não podem mais ser analisadas com ajuda de uma única classificação binária; ao contrário, a atual fragmentação da sociedade numa multiplicidade de setores sociais exige uma multiplicidade de perspectivas de autodescrição. Analogamente, o singelo dualismo Estado/sociedade, refletido na divisão do direito em público e privado, deve ser substituído por uma pluralidade de setores sociais reproduzindo-se, por sua vez, no direito.”

E, adiante, prossegue Teubner, agora tratando especificamente dos regimes de transferência de serviços públicos para entidades do âmbito privado:

“A própria onda de privatizações revela-se sob um aspecto completamente diferente, quando se abre mão da simples dicotomia público/privado em favor de uma policontextualidade mais sofisticada da sociedade, quando se reconhece que a autonomia privada única do indivíduo livre transforma-se nas diversas autonomias privadas de criações normativas espontâneas. Nesse sentido, privatização não se trata mais, como normalmente se entende, de redefinir a fronteira entre o agir público e o privado, mas de alterar a autonomia de esferas sociais parciais por meio da substituição de seus mecanismos de acoplamento estrutural com outros sistemas sociais. Não se trata mais simplesmente de um processo em que atividades genuinamente políticas, antes dirigidas aos interesses públicos, transformam-se em transações de mercado economicamente voltadas ao lucro. Antes, o que se altera pela privatização de atividades sociais autônomas – pesquisa, educação ou saúde, por exemplo -, que apresentam seus próprios princípios de racionalidade e normatividade, é o seu regime institucional. Em lugar de uma relação bipolar entre economia e política, deve-se apresentar a privatização como uma relação triangular entre esses dois setores e o de atividades sociais. Torna-se, assim, diretamente compreensível que a privatização leva, de fato, a uma impressionante liberação de todas as energias até então bloqueadas pelo antigo regime público. Paralelamente, no entanto, novos bloqueios desencadeados pelo novo regime tornam-se visíveis. Um antigo mismatch, um antigo desequilíbrio entre atividade e regime, é substituído por um novo mismatch.”

Nesse contexto é que se insere o instrumento do contrato de gestão firmado entre o Poder Público e entidades privadas, que passam a ser qualificadas como públicas, ainda que não-estatais, para a prestação de serviços públicos por meio de um regime especial em que se mesclam princípios de direito público e de direito privado.
Sobre o instrumento do contrato de gestão, o Ministro Eros Grau assim se manifestou em seu voto:

“A definição de contrato de gestão como ‘instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social’ causa espanto. Pois a de número 9.637 é uma lei que sem sombra de dúvida muito inova a ciência do direito: seu artigo 5º define como contrato não o vínculo, mas seu instrumento…”

Nesse ponto, gostaria de lembrar, também com base nas lições de Günther Teubner, que a lei inova sim, mas inova em consonância com o direito privado moderno, no qual o contrato deve ser compreendido não como uma relação entre pessoas, mas entre textos, entre discursos jurídicos, econômicos, tecnológicos etc. Eis as palavras do mestre alemão:

“Quiçá devêssemos ouvir o conselho do talvez maior especialista da reconstrução do direito privado, Jacques Derrida, que nos oferece a seguinte fórmula epigramática: “o laço da obrigação ou a relação de obrigação não existe entre aquele que dá e aquele que recebe, mas entre dois textos (entre dois ‘produtos’ ou ‘criações’). Essas ipsissima verba são uma nova versão da teoria do contrato relacional (relational contracting), que entende o contrato não mais como um mero consenso entre duas partes, mas sim como uma relação social complexa. De fato, gostaria de defender a tese de que o direito contratual deve ser reconstruído de forma relacional, mas não apenas no sentido comunitário, hoje predominante, da palavra, como uma relação cooperativa, simpática, calorosa de inter-humanismo no mercado, mas sim como uma relação fria e impessoal de intertextualidade. Gostaria de desenvolver um argumento estritamente antiindividualista, estritamente antieconômico para as muitas autonomias do direito privado, pelo qual o contrato não aparece mais como transação meramente econômica entre dois agentes, mas como espaço da compatibilidade entre vários projetos discursivos – entre dois mundos contratuais. Ao mesmo tempo, gostaria de desenvolver o argumento normativo de que os direitos de discursos que aparecem nesses contratos como meros fenômenos sociais, apenas de forma rudimentar e sem contornos fixos, necessitam de institucionalização jurídica. Dito de forma mais genérica: gostaria de colocar esses argumentos no contexto maior de um direito privado contemporâneo, que necessita de transformação em um direito constitucional de sistemas de regulação global.”

Esses são os novos pressupostos de análise de um direito privado publicizado e constitucionalizado, e de um direito público submetido a racionalidades próprias dos discursos do direito privado.
Essas razões já me são suficientes para indeferir a medida cautelar. Não vislumbro nenhuma das inconstitucionalidades apontadas pelos requerentes.
Assim, não tenho dúvida de que, neste momento, o Tribunal não deve adotar outra solução senão a de negar o pedido de medida liminar para então requisitar informações definitivas e, após, abrir vista dos autos ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República para que se manifestem sobre o mérito da ação. Após o devido trâmite procedimental, então poderemos discutir a fundo todas as questões nesta ação suscitadas.
Relembro, por fim, que meu voto não abrange o artigo 1º da Lei n° 9.637/98, objeto de voto proferido por meu antecessor, o Ministro Néri da Silveira.
Assim sendo, voto pelo indeferimento da medida cautelar nesta ação direta de inconstitucionalidade.

* acórdão pendente de publicação

Deixe um comentário