Da Carta Capital de 14/03/2012
Como dois e dois
Por Otaviano Helene (professor do Instituto de Física da USP, ex-presidente da Associação de Docentes da USP e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais)
Os problemas do nosso sistema educacional são tão claros quanto as soluções. Não é preciso inventar
Nosso sistema educacional tem problemas quantitativos e qualitativos muito graves. Vejamos, primeiro, os quantitativos. Nos primeiros anos da educação infantil, sob responsabilidade principalmente dos municípios, atendemos apenas cerca de um quinto das crianças. Ao longo do ensino fundamental, nível educacional cuja oferta é dividida entre estados e municípios, um terço dos nossos jovens deixa a escola. Como resultado, a cada ano, cerca de 1 milhão de brasileiros iniciam a idade adulta sem ter sequer concluído o ensino fundamental, apesar de este ser um direito constitucional e um dever, e assim permanecerão pelas próximas décadas. Como a evasão continua ao longo do ensino médio, esse nível educacional, majoritariamente sob a responsabilidade dos estados, é hoje completado apenas por metade da população. E ao final do ensino superior chega apenas um quinto dos cidadãos.
Segundo dados coletados e divulgados pela Unesco, a situação descrita nos coloca em uma das mais vergonhosas posições, mesmo quando a comparação se restringe aos países sul-americanos: estamos entre os piores colocados no que diz respeito à alfabetização juvenil (dos 15 aos 24 anos) e à taxa de inclusão no ensino superior.
Os problemas qualitativos acompanham os quantitativos. A enorme maioria dos nossos estudantes apresenta graves problemas em praticamente todas as áreas do conhecimento, o que frequentemente provém da falta de efetivo entendimento de um texto simples. Evidentemente, isso exclui qualquer possibilidade de sua interpretação mais ampla. Tal situação impede o desenvolvimento e o aprendizado, fato claramente revelado pelo desempenho mostrado nas diversas provas e avaliações feitas ao longo do ensino básico.
Em comparações internacionais, como o Pisa (programa da OCDE que examina a proficiência em leitura, matemática e ciências de estudantes de 15 anos de idade com menos de três anos de defasagem idade-série), nossas mazelas se mostram em toda a sua plenitude. Menos de 1% de nossos estudantes de 15 anos de idade atinge os dois níveis superiores, em uma escala que vai de 1 a 6, padrão atingido por cerca de 10% dos alunos dos países mais desenvolvidos. No outro extremo, os dois níveis mais baixos, estão quase 50% dos nossos estudantes, ante apenas perto de 15% dos estudantes daqueles países. A diferença é muito grande, e seria maior ainda se fossem incluídos na amostra todos os nossos jovens de 15 anos, muitos dos quais não foram considerados no levantamento pelo fato de terem sido excluídos da escola ou possuir defasagem idade-série superior à máxima tolerada para participar das avaliações.
Como podemos pretender ter um país realmente soberano nas relações internacionais quando nações relativamente pequenas, como a Bélgica ou a Holanda, ou vários estados dos EUA, ou apenas uma pequena região do Japão, têm um número maior de estudantes mais bem preparados (níveis 5 e 6 na escala do Pisa) do que o Brasil inteiro?
No ensino superior, a qualidade é comprometida tanto pelo pequeno número de estudantes bem preparados que conclui o ensino médio quanto pela enorme participação das instituições privadas, grande parte delas de caráter mercantil, onde estão três quartos dos nossos estudantes daquele nível de ensino. Na verdade, somos um dos recordistas mundiais em privatização, e, vale lembrar que, contra as expectativas do senso comum, os EUA não estão entre eles.
Nossa altíssima taxa de privatização, com o predomínio de instituições nas quais a possibilidade de ganho dita as regras, faz com que, em comparação com os demais países, tenhamos uma concentração muito alta de formandos em cursos de baixos retornos cultural, social e econômico. Ao mesmo tempo, são poucos os que se graduam nas áreas relacionadas ao desenvolvimento do setor produtivo (bons engenheiros, por exemplo, como é sentido pelo setor industrial mais sofisticado) e à promoção do bem-estar da população (como bons médicos e professores, coisas que os usuários do SUS e frequentadores da maioria das escolas públicas e de grande parte das escolas privadas conhecem muito bem).
Outro aspecto muito grave de nosso sistema é a desigualdade de oportunidades. Nossas escolas reproduzem, dentro das salas de aula, a enorme desigualdade social e de renda do País. O investimento educacional, acumulado durante toda a vida, daquela terça parte das pessoas que abandonam o ensino fundamental antes de completá-lo, pode não chegar a uma dezena de milhares de reais, enquanto entre os cerca de 20% que completam o ensino superior, em especial aqueles pertencentes aos segmentos sociais mais bem aquinhoados, o investimento educacional frequentemente supera os 200 mil ou 300 mil reais. Ao oferecer para as pessoas padrões de formação tão diferentes, criamos as condições necessárias (e suficientes, em um sistema capitalista) para que continuemos entre os países com as piores distribuições de renda do mundo.
O que tem acontecido não apenas não deixa margens para expectativas positivas, como é extremamente grave: as taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio permaneceram estagnadas ou mesmo foram reduzidas nos últimos dez ou 12 anos.
A expansão do ensino superior ocorreu no Brasil, principalmente por meio de instituições privadas, com os problemas já apontados, e isso tem se intensificado nas últimas décadas. A expansão do sistema público nesse nível de ensino nunca acompanhou, quantitativamente, a das instituições privadas. Na verdade, durante a última década do século xx, as instituições federais permaneceram praticamente estagnadas, sufocadas por falta de reposição docente e de recursos materiais. Nessa época, as matrículas em universidades estaduais praticamente se igualaram às das federais, mas nem sempre com o financiamento correspondente às importantes tarefas que teriam a executar.
Nos últimos anos, houve expansão do sistema federal. Contudo, ela foi pautada pelo Programa Reuni (de reestruturação e expansão das universidades) e baseia-se em uma proporção estudantes por professor muito alta, bem acima da proporção típica mundial, que é da ordem de dez estudantes por professor nas instituições universitárias. Tal expansão inviabiliza a oferta de cursos com maiores demandas por professores, como os que envolvem laboratórios, em especial com seres vivos, e de cursos com grande carga horária (como os de medicina ou engenharias de tempo integral).
Além disso, sobrecarrega professores e diminui, em muito, as chances de recuperação de deficiências dos estudantes ingressantes, em especial daqueles provenientes das classes menos favorecidas. Assim, ao pretender ser inclusiva, muitas vezes a expansão mal orientada torna-se outro fator de exclusão. Por fim, ainda reduz as possibilidades de pleno aproveitamento da capacidade de trabalho em pesquisa dos mais de 10 mil doutores formados a cada ano.
O que fazer para mudar nosso sistema educacional, de tal forma que ele responda às necessidades de profissionais, que contribua para a emancipação das pessoas, que forneça a cada um os instrumentos necessários para compreender um mundo cada vez mais complexo e que, em vez de reproduzir as desigualdades e contribuir para sua perpetuação, faça o oposto? Muita coisa, certamente, e todas elas compatíveis com nossas possibilidades.
Uma primeira e fundamental condição que, se não suficiente, certamente é necessária, é o financiamento adequado. E, como corolário dessa afirmação, a ausência desse financiamento é suficiente para produzir um mau sistema educacional. Vejamos os números. O Brasil investiu, em 2011, por estudante no ensino básico público, cerca de 200 reais por mês. Qualquer um consegue imaginar que tipo de escola conseguimos construir com esses recursos.
Para uma comparação internacional adequada desses investimentos, precisamos relativizar os valores investidos em educação pela efetiva capacidade econômica de cada país, medida pela renda per capita. Países tão diferentes quanto Áustria, Cuba, Djibuti, Etiópia, Noruega e Polônia, estão entre aqueles cujo investimento educacional público por ano e por estudante no ensino primário supera, e em alguns casos em muito, os 25% da renda per capita nacional, o que corresponderia a valeres atuais de cerca de 400 a 500 reais por mês e por estudante nas escolas básicas.
Poderíamos estender a análise examinando os diferentes graus educacionais, mas isso já é o suficiente: precisamos praticamente dobrar os gastos por estudante para nos equipararmos à realidade dos demais países. E, notem, essa comparação não é em dólares ou outra moeda qualquer, É calculada em proporção da renda per capita, cabendo, portanto, no PIE de qualquer país, sendo válida para países socialistas como Cuba, ricos como a Noruega ou pobres como a Etiópia. Mas o aumento do investimento total deveria ainda ser maior, pois precisamos incorporar ao sistema educacional pessoas hoje expulsas prematuramente das escolas.
Os recursos adicionais seriam usados, principalmente, para melhorar a remuneração e as condições de trabalho dos professores, dar maiores recursos às escolas, aumentar o número de horas de permanência dos estudantes nas escolas, oferecer atendimento especial àqueles que o necessitem, criar instrumentos que compensem as despesas adicionais ou a perda de renda provocadas pela frequência à escola (gratuidade ativa) etc. Como consequência importante de tal iniciativa, a profissão docente voltaria a ser valorizada, o que também se reverteria em melhora da qualidade da educação oferecida a quase 90% de nossas crianças, que hoje frequentam a escola pública.
Está demonstrado que sem esse tipo de iniciativa, não há milagre: quase nada resolve aumentar as vagas em cursos de licenciatura em boas universidades públicas, pois a procura não corresponde às necessidades por docentes e os poucos que se formam – por vezes, após alguns anos de frustração tentando exercer a profissão procuram, e encontram, outro tipo de emprego, compatível com a sua formação.
Como antecipado, um dos grandes problemas a ser enfrentados no ensino superior, talvez o maior deles, é a privatização. A perversa barreira financeira das mensalidades não é o pior aspecto das instituições privadas: muitas delas oferecem seus cursos tendo como principal ou mesmo único critério a viabilidade financeira. Ora, está demonstrado que o setor público consegue oferecer um mesmo curso de graduação a um custo igualou menor do que o custo do setor privado. Além disso, tem a visão sistêmica para distribuí-los pelas diferentes regiões do País e áreas do conhecimento de forma mais adequada e entra com o diferencial de associar a pesquisa em diversas áreas ao ensino ofertado.
Então, por que privatizar? Quem ga11 ha com isso? Quem perde nós sahen10s: os estudantes, que, em grande parte, pagam caro por maus cursos. Os docentes, que não encontram condições de trabalho condizentes com suas possibilidades e formações e majoritariamente, têm se sujeitado a situações de emprego absolutamente precárias, sob contratos por hora-aula; a população como um todo, que sofre com a carência de bons profissionais, formados nas áreas certas e adequadamente distribuídos. Essa situação e os interesses particulares que a criaram precisam ser urgentemente enfrentados, com todo rigor.
O Brasil, ainda que tenha uma renda per capita modesta, equivalente quase exatamente à média mundial, não tem carências urgentes como os países muito pobres, cuja quase totalidade da capacidade produtiva nacional é destinada a satisfazer necessidades mais básicas e vitais. Temos capacidade econômica para enfrentar adequadamente o problema educacional, como várias nações com iguais dificuldades o fazem ou já fizeram no passado, ultrapassando, assim, o estágio crítico em que ainda nos encontramos.
Para tanto, precisamos transformar uma parte maior de nosso PIE em melhores condições de vida e trabalho para os professores, em escolas e equipamentos didáticos e tudo o mais necessário para construir o sistema educacional de que precisamos.
