
Carta Capital de 09 de maio de 2012
Sem fim e sem rumo
Europa
A opção pela austeridade continua a fazer vítimas e a não produzir resultados
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
A Itália e a Espanha voltaram ao proscênio da crise europeia, sob a estrita vigilância dos mercados financeiros, os mesmos que levaram as economias à breca com suas práticas imprudentes e, não raro, fraudulentas. Salvos da bancarrota pelos governos generosos, os suplicantes de ontem, algozes de hoje, cobram caro para acolher em suas carteiras os papéis soberanos.
Exaustas das torturas da austeridade sem-fim e sem rumo, indignadas diante das chantagens dos mercados, as massas foram às ruas para protestar neste 1º de Maio.
Mesmo sitiados pelas tropas midiático-financistas, os cidadãos comuns reagem com o voto nos países com eleições próximas: na França a soma dos votos contrários à aliança “Merkozy” chegou a mais de 50% do eleitorado. Na Grécia, a coalizão dos dois grandes partidos é minoritária, se comparada às intenções de voto da oposição fragmentada no mosaico de pequenas agremiações.
Caixa de ressonância da opinião oficial alemã, a mídia conservadora acena com os riscos do populismo à esquerda e à direita e não se cansa de atribuir a crise europeia aos desmandos fiscais dos governos gastadores e perdulários. O ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schauble, roda o realejo de Angela Merkel: “não há alternativa para a austeridade”. A Wermacht e Goebbels não fariam melhor.
Na aurora do euro, eliminado o risco cambial pela adoção da moeda única, a corrida dos bancos para abocanhar novos devedores na periferia foi frenética. Os bancos alemães e franceses lideraram o certame, à frente de suecos, austríacos e ingleses. Em meio à consigna que proclamava “desta vez será diferente” os bancos dó “centro” promoveram um impressionante “movimento de capitais” intraeuropeu, capturando em sua rede de devedores os congêneres dos “periféricos”. Formaram posições credoras pesadas contra os colegas da Espanha, de Portugal, da Irlanda. A dívida intrafinanceira foi às alturas e disseminou lentamente o risco sistêmico.
A maioria dos ditos PIIGS caiu na farra do endividamento privado, ensejada pela redução rápida e drástica dos juros cobrados aos devedores privados dos países cujas moedas, se existissem, não proporcionariam tal moleza. Encolheram os spreads entre os juros alemães, o benchmark, e as taxas pagas pelos tomadores dos países menos votados.
As mentiras e tapeações começam por ignorar que até 2007os déficits fiscais dos ditos periféricos (Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Irlanda) estavam muito bem comportados, respeitavam, com sobras, os critérios de Maastrich, ainda que Grécia e Itália apresentassem níveis de endividamento cronicamente elevados. A Espanha, por exemplo, exibia, em 2007, uma relação dívida/PIB de 27% e um superávit de 1,9%, índices superiores aos da austera Alemanha que mostrava, no mesmo ano, um superávit fiscal de 0,3% e uma dívida pública de 50% do PIB. Na verdade, as políticas fiscais dos chamados periféricos foram bastante cautelosas: entre 2001 e 2007, o déficit médio caiu de 2,3%, para 1,8%, do PIB. Com a eclosão da crise, o salto foi espetacular: 5,5%, em 2008, 11,3%, em 2009 e 13,2%, em 2010.
Enquanto asseguravam o controle da instância fiscal, os países da periferia acumulavam desequilíbrios em conta corrente dos balanços de pagamentos. Às vésperas da crise, no ano da graça de 2007, o déficit médio em conta corrente de Grécia, Irlanda, Itália, Portugal e Espanha chegou a 8,5% do PIB, enquanto o superávit da turma dos virtuosos (Alemanha, Áustria, Bélgica e Holanda) se aproximava dos 4%. As cifras das contas externas denunciavam a política neomercantilista da Alemanha, maior beneficiária do euro. Resumo da peça: os bancos estrangeiros, sobretudo alemães e franceses, financiavam o consumo dos gastadores periféricos que derramavam suas demandas pressurosas nas engrenagens da indústria alemã.
A recessão, como é de conhecimento geral, provocou a queda das receitas públicas, suscitou o aumento automático do gasto decorrente, das medidas de proteção social e finalmente obrigou os governos a socorrer os sistemas financeiros quebrados. A crise das dívidas soberanas é conseqüência do estouro da bolha financeira e do colapso do gasto privado, o que impôs aos bancos centrais e aos tesouros nacionais a intervenção “salvadora”. No compasso da desalavancagem das empresas e famílias e das operações de resgate dos bancos, o endividamento privado transmutou-se em déficit fiscal e dívida pública, A despeito da recessão, os déficits em conta corrente vão bem, obrigado.
No auge da crise de 2008, os bancos centrais cumpriram seu dever e impediram que o crash financeiro degenerasse numa Grande Depressão. Os estoques de dívida soberana emergiram dos escombros do endividamento privado promovido pelos bancos alemães, franceses, austríacos etc., que se lambuzaram nas delícias da farra imobiliária e da bolha de consumo.
Quando a roda da fortuna girou em falso, foi inevitável o recurso à “centralização estatal”, única forma de contornar a destruição do crédito e da moeda, ou seja, da rede informacional da economia monetária da produção. A ruptura nas articulações do sistema de provimento de liquidez, de gestão da riqueza e de pagamentos acarretou a quase paralisia do metabolismo econômico.
Os bancos centrais, portanto, estão condenados a cumprir a missão de reverter a deterioração generalizada dos balanços. Esses desequilíbrios financeiros e patrimoniais revelam-se ainda mais severos e difíceis de “digerir” na posteridade de um ciclo de crédito apoiado na valorização fictícia de ativos, como foi o caso dos imóveis.
A emergência da crise da dívida soberana a partir do colapso do endividamento privado exige intervenções não convencionais das autoridades monetárias. Só elas seriam capazes de impor regras destinadas a facilitar o refinanciamento das dívidas e a recuperação do crédito ao setor privado. Deixados à sua própria sorte, os bancos privados não podem contabilizara desvalorização implícita de seus ativos e os devedores não suportam a insistência dos “mercados” em manter o valor nominal das dívidas. A insistência alemã na austeridade é uma defesa ineficaz de seus bancos “bichados”. Lembra o calvário dos programas de ajustamento impostos às economias latino-americanas depois da crise da dívida dos anos 80. Tudo terminou no Plano Brady, aquele que reestruturou as dívidas soberanas.
Na Europa, a encrenca é sistêmica: o crédito está travado porque os bancos desconfiam de tudo e de todos, inclusive deles mesmos. A rede de pagamentos e de provimento de liquidez formada pelo sistema bancário europeu, dia sim, dia não, está à beira da hecatombe. O colapso da confiança não pode ser superado sem a centralização das decisões na autoridade monetária encarregada de zelar pela higidez das relações interbancárias e, portanto, pela “normalidade” das operações de crédito.
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