Universidade shylockiana: cortando na carne do ensino, da pesquisa e da extensão

 

Sétimo texto da parceria entre o Blog do Tarso e a APUFPR, que lançaram campanha para discutir o ajuste fiscal e seus impactos na universidade. Ver também: O ajuste fiscal e as universidadesA Desoneração interessa a quem?O sistema da dívida pública gera riqueza à custa dos direitos sociais do povo brasileiroLógica da austeridade, A ideologia do ajuste fiscal coloca a ciência e a sociedade em apuros e O “ajuste fiscal” e a paz de espírito dos tubarões.

Por Raimundo Tostes

O leitor ao ler a expressão cortar na própria carne já considerou alguma vez a sua interpretação literal? Pois bem, Shakespeare considerou esta possibilidade em O Mercador de Veneza. O cenário da peça é Veneza do século XVI. O jovem nobre Bassanio pede um empréstimo ao amigo Antonio. Seu desejo é viajar a Belmont e pedir a mão de sua amada Portia. Sem poder ajudá-lo, Antonio sugere ao jovem procurar o agiota Shylock. Embora relutante, Shylock consente com o empréstimo, sob a condição de que Bassanio empenhe uma libra (pouco mais de 400g) de sua própria carne, no caso de não honrar o saldo do débito. Convido o leitor a ler a peça ou assistir ao espetáculo para ver que os desdobramentos do acordo resultam na impossibilidade de Bassanio honrar o compromisso e, em consequência, pagar o débito com a própria carne.

Assim, esta obra shakesperiana é objeto de estudo de filósofos, sociólogos e, principalmente, juristas quanto ao equilíbrio entre justiça e equidade. Em suma, é preciso considerar que as ações institucionais, ainda que por instrumentos e meios legais, podem extrapolar limites éticos e morais. A visão shylockiana de fazer cumprir a letra da lei cortando a carne do devedor estabelece uma possibilidade de justiça que está longe do que é moralmente aceitável e humanamente factível.

Esta visão shylockiana permeia vários aspectos da vida civil. Em parte, herança de um princípio jurídico expresso na sentença pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos). Com efeito, a postura shylockiana permeia o sistema financeiro, as relações comerciais e o próprio papel do Estado. Indo além, o Estado, servindo-se do seu poder discricionário, pode exigir de seus cidadãos o cumprimento dos pactos legais, aos limites da exorbitância moral da lei.

Ao instituir medidas de austeridade – e essas medidas são basicamente econômicas, o Estado estabelece diferentes graus de contribuição e sacrifício de seus cidadãos. Quanto menor for a desigualdade social, tanto menor será a discrepância entre o impacto sobre os estratos sociais. Mas, o inverso social não é verdadeiro. O que significa dizer que as medidas de austeridade impactam fortemente uma sociedade com marcante desigualdade social. Isto se resume ao óbvio: quem paga a conta do ajuste fiscal? Antes de formular sua resposta, observe alguns números. O recém publicado relatório A Classe Média Global é Mais Promessa Que Realidade (julho de 2015), do Instituto norteamericano Pew Research Center, traz dados sobre a renda de 111 países. O relatório aponta que a maioria da população brasileira ainda é pobre (renda de até US$ 2 por dia) ou de baixa renda (US$ 2 a US$ 10). São 50,9% de brasileiros neste estrato, 7,3% de pobres e 43,6% de baixa renda. O percentual de pobres entre nossos vizinhos comparáveis no cone sul é bem menor: Argentina 2,7%, Chile 1,6% e Uruguai 0,2%. A classe média (US$ 10 a US$ 20 por dia) detém apenas 27,8% dos brasileiros, novamente o pior entre os vizinhos: Argentina 32,5%, Chile 33,8% e Uruguai 32,8%. Quanto aos mais endinheirados, o relatório aponta que os brasileiros de renda média alta (US$ 20 a US$ 50) são apenas 15,9% e os efetivamente ricos (mais de US$ 50) são modestos 5,4%. Nossos hermanos completam a goleada: na classe média alta e ricos, respectivamente, os percentuais alcançam 23,5% e 4,3% na Argentina, 23% e 8,2% no Chile e 29,9% e 8,8% no Uruguai.

Portanto, o impacto do ajuste fiscal é efetivamente maior em 78,7% da população brasileira. No contexto em que, neste exato momento, enquanto escrevo este artigo, a taxa Selic alcança 14,15% de juros ao ano com viés de alta, o real despenca frente ao dólar, o desemprego bate os 7% e a renda do trabalhador é corroída pela inflação que pressiona o teto da meta.

E estas dores, angústias e cortes atingem como a universidade pública?

Um relatório apresentado pelo Conselho de Planejamento e Administração da penas na Universidade Federal do Paraná, em junho deste ano, demonstra que o impacto do ajuste fiscal é de 8,3% no custeio da instituição; de 57,56% nos investimentos; e, no total dos recursos de custeio e capital, de 20,52%. Exatamente no momento em que a UFPR está abrindo novos cursos, ampliando vagas, instalando laboratórios e expandindo sua infraestrutura.

Na extensão universitária, o mais significativo programa institucional vigente hoje, o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) sofreu um contingenciamento de 50% das bolsas por instituição, prejudicando licenciandos, professores supervisores e coordenadores de subprojetos. Os cortes também atingem duramente a pós-graduação das universidades públicas. A CAPES anunciou, no início de julho, mais cortes. Para o Programa de Excelência Acadêmica (PROEX) serão menos 23,3% do orçamento previsto e para o Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP), menos 8,7%, o que deixa muitos programas de mestrado e doutorado sem – ou quase nenhum – recurso.

É imensurável o custo e o atraso deste sacrifício à rede pública de ensino superior, bem como o quanto isso impacta nossa capacidade científica e tecnológica. Dados de órgãos públicos e privados apontam que os investimentos em infraestrutura necessários ao país para os próximos quinze anos alcança a cifra superior a cinco trilhões de reais. Obviamente, que este prazo e valor mudam ao diminuir a capacidade das universidades públicas – que concentram 95% da pesquisa no país – de investir em pesquisa, inovação e desenvolvimento tecnológico. Além disso, as múltiplas carências da sociedade brasileira por profissionais nas mais diversas áreas do conhecimento se agudizam pelo comprometimento na formação da massa crítica requerida.

A visão de Shylock sobre justiça e economia supera sobejamente a dignidade humana. A atual visão governista de uma universidade shylockiana incorre na mesma loucura. A tragédia é que a universidade não é um palco. Os professores não são atores. Não findam no esquecimento, sem olhos, sem memória, sem mais nada.

Raimundo Tostes é professor adjunto do campus avançado da UFPR de Jandaia do Sul

Raimundo

12 comentários sobre “Universidade shylockiana: cortando na carne do ensino, da pesquisa e da extensão

  1. Sufocar o bem estar social dos povos, sempre foi a artimanha dos líderes desonestos que alcançam o poder e negar-lhes saúde e educação são as maneiras mais eficazes de os manietar sorrateiramente a longo prazo. O desemprgo fará o resto e a fome os tornará escravos de todas as prepotências.

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  2. Mas o que é isso companheiro…??? Criticando medidas do governo do partido mais amado do Brasil, presidido pela Dilma “dobra a meta”, acaso você é representante da elite branca ? ah já sei, é enviado da Veja que se infiltrou no blog…..sim, porque segundo petistas, não há crise, quem critica é rico entojado insensível e o povão tá amando a Dilma….aliás, Tarso, você é Dilma, você também é responsável pelo apoio a esse ajuste que ferrou de vez a já combalidada educação federal brasileira….Tarso, não vem querer se descolar agora não…Tarso, assume, ou você apoia Dilma ou critica o governo dela, não fica em cima do Muro não, porque você tá parecendo Tucano….

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  3. Fica claro então, nesse seu ato falho, que na verdade seu sonho, e de muitos petistas, seria só a Dilma mandar…os milhões que votaram em Serra, Aécio, Caiado, Richa, Renan (e no filho dele que governa Alagoas), de nada valem, até a gente pobre que vota em Renan, por exemplo, é o que ? são coxinhas, bla bla bla….

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    • Os milhões que votaram nessa corja encabeçada por Aécio, Serra, Alckmin, Renan, Cunha e muitos outros, seria melhor enviá´-los para a Coreia do Norte para aprenderem o que é comunismo.
      Esse reajuste do governo está muito errado! Não se entende! Dilma vai aguentar as consequências disso!

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  4. Pingback: Por que o ajuste fiscal nos empurrou à greve? | Blog do Tarso

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