O Estado – Vladimir Safatle

estado

Na Folha de S. Paulo de 14.01.2014

Poucos problemas político-filosóficos têm o dom de produzir tantos conflitos quanto aquele a respeito da função do Estado. A divisão entre os que querem pensar uma sociedade sem Estado e os que não veem sentido algum nessa empreitada ultrapassa a dicotomia tradicional entre esquerda e direita. De toda forma, qualquer reflexão possível sobre o Estado na política contemporânea deve partir da internalização das críticas por ele sofridas nos últimos quarenta anos.

Várias delas insistiam no Estado como aparato disciplinar responsável pela perpetuação de uma vida social normatizada na figura do direito. O cidadão do Estado era, acima de tudo, alguém que deveria se conformar a um aparato normativo legal e uniformizador a fim de ser reconhecido como pessoa capaz de contrair contratos, assumir propriedades, direitos positivos, deveres e funções sociais.

A crítica, peça maior de uma teoria renovada do poder, era pertinente. No entanto, ela não implicava, necessariamente, o abandono do reconhecimento do Estado como instituição política central, mas, sim, sua metamorfose. Pois seu puro e simples abandono trazia problemas insolúveis.

Não queremos apenas a possibilidade de se desenvolver como singularidades, queremos ser reconhecidos enquanto singularidades. Mas não quero ser reconhecido apenas na minha comunidade, entre os meus amigos. Quero ser reconhecido em todo e qualquer contexto social do qual participo e porventura participarei.

Abre-se assim uma dimensão de demanda de universalidade que nos impulsiona em direção a um arranjo institucional de garantias de reconhecimento que nos leva, necessariamente, a um conceito pós-nacional de Estado. Sem tal arranjo, demandas dessa natureza perdem seu direito.

Por outro lado, a atividade econômica é produtora de desigualdades. A ampliação da posse comum minora tais desigualdades, mas uma defesa abstrata do fim da propriedade apenas faria com que o desejo de individualização presente na propriedade se voltasse contra o espaço comum. Hegel era suficientemente astuto para perceber que a propriedade não era o problema, mas sua generalização a toda a esfera social e sua transformação em direito fundamental acima de todos os outros.

Mas que instituição tem a força de quebrar os interesses individuais no campo da economia a fim de impedir o desenvolvimento da desigualdade? Claro que poderíamos recorrer à teoria do Estado como agente da classe dominante, mas, mais de uma vez na história, foi a pressão das classes desfavorecidas sobre o Estado que quebrou tais interesses de classe. O que nos obriga a desenvolver, no mínimo, uma figura um pouco mais contraditória do Estado.

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Luta de classes – Paul Singer

Charge - Choque

Na Folha de S. Paulo de 14.01.2013

Reconhecer a pancadaria ao redor de nossa política econômica como luta de classes é necessário para que o público que vai decidir essa parada nas urnas não seja levado a pensar que se trata de uma contenda entre peritos e jovens ingênuos

Desde que a presidenta Dilma Rousseff denunciou a “guerra psicológica” que estaria sendo travada contra os esforços de seu governo para acelerar o crescimento da economia brasileira, os adversários acirraram suas críticas à política econômica vigente, tornando o debate sobre essas questões um dos mais importantes pomos de discórdia que animam os embates entre os candidatos à Presidência nas próximas eleições.

É interessante observar como esses debates –travados num país como o nosso, em pleno emprego há cinco anos– não se distinguem na essência dos debates travados na maioria dos países capitalistas que são democráticos.

Nestes países, quase sempre o desemprego é o mais importante problema social, causa de profundo sofrimento dos que se sustentam mediante trabalho assalariado, tanto dos que têm emprego e temem perdê-lo como dos que foram demitidos e enfrentam grandes dificuldades em conseguir outro.

Isso se aplica tanto a países tidos como “falidos”, como a Grécia e outros da periferia sul da Europa, como aos Estados Unidos e outros que hospedam poderosas multinacionais financeiras e utilizam seu poderio político-econômico para impor a países esmagados por portentosas dívidas públicas ruinosas políticas de “austeridade”, cujo efeito é produzir recessões sucessivas, que ampliam o desemprego e a desgraça dos que não são donos de empresas nem sequer de instrumentos de trabalho que lhes permitiriam ganhar a vida por conta própria.

A maior parte das divergências que atualmente alimentam as controvérsias giram ao redor da questão do emprego e do tamanho e destino do gasto público e de como o ônus dele decorrente é repartido entre as classes sociais que compõem o universo dos contribuintes.

Ao lado desses dois temas, aparecem assuntos correlatos: como os ganhos de produtividade do trabalho são repartidos entre lucros e salários, como a inflação responde ou não aos aumentos de salários e como a valorização cambial da moeda nacional afeta as exportações e as importações.

A base da maioria dessas controvérsias está no tamanho do poder do Estado em controlar e conduzir a economia nacional, tendo por objetivo atender mais ou menos as reivindicações da maioria pobre da população, que constitui também a maioria do eleitorado.

A classe dominante é formada pelos capitalistas que têm por objetivo a sua “liberdade” de fazer o que quiserem com o câmbio, com a localização geográfica de seus investimentos, com os preços e juros que eles cobram dos clientes. Para tanto, eles reivindicam a exclusão do Estado da arena econômica.

A esse respeito, os interesses dos capitalistas e das classes trabalhadores não podem deixar de se contrapor. O povo trabalhador depende das políticas ditas “sociais” que tomam a forma de serviços públicos essenciais: saúde, segurança, transporte, energia, telecomunicações, educação de crianças, jovens, adultos e idosos, habitação social, previdência, cultura etc..

Embora os serviços públicos estejam à disposição de toda a população, somente os pobres dependem deles. As classes abastadas não os usam, porque quase todos eles têm como contraparte serviços análogos prestados por empresas capitalistas privadas.

O entrechoque de interesses fica flagrante no caso do transporte urbano: o espaço de circulação é disputado por automóveis de passageiros e ônibus e outras modalidades de transporte público.

A mesma disputa fica tristemente óbvia quando os porta-vozes da classe capitalista encenam campanhas contra o tamanho dos impostos, quando todos sabem que o SUS, o Sistema Único de Saúde do qual dependem os trabalhadores, carece de meios para curar e salvar vidas porque o Orçamento do governo federal não dispõe de recursos para tanto.

A luta de classes até o fim do século passado se travava entre liberais extremados, conhecidos como neoliberais, e partidários de diferentes socialismos então sendo praticados em diversos países. Atualmente, a maioria desses socialismos “realmente existentes” não existe mais. A plataforma dos críticos e adversários do capitalismo hoje é inspirada tanto no marxismo como em autores profundamente comprometidos com a democracia como Keynes, Gramsci, Karl Polanyi, Rosa Luxemburgo e Baruch Spinoza.

O que atualmente surge como alternativa mais significativa ao capitalismo é a economia solidária, praticada por setores organizados em movimentos sociais em todos os continentes, geralmente sob a forma do cooperativismo.

A economia solidária é um modo de produção que surgiu nos alvores da primeira revolução industrial, no início do século 19, na Grã-Bretanha e na França, como reação aos salários miseráveis pagos então aos operários, operárias e crianças nas fábricas por jornadas extenuantes de 15 ou mais horas…

Ocorrendo conflitos com os patrões, os grevistas eram despedidos e, em reação, formavam suas próprias oficinas, uma vez tendo aprendido os segredos do ofício.

Desse modo surgiram as primeiras cooperativas de trabalho, empresas pertencentes aos trabalhadores, que as administravam coletivamente, cada sócio tendo um voto nas assembleias em que as decisões eram adotadas. Os ganhos resultantes do trabalho comum eram repartidos por critérios de justiça distributiva entre os sócios, adotados por maioria ou unanimidade nas assembleias.

Esse modelo aperfeiçoado pelos Pioneiros de Rochdale, em 1844, continua sendo praticado, com aprimoramentos de todas as filiadas à Aliança Internacional de Cooperativas, inclusive as agrárias, de consumo, de crédito, de moradia e de diversas outras modalidades.

Hoje, 170 anos depois, o cooperativismo surge como um modo de organizar atividades de produção, comércio justo, poupança e crédito, consumo consciente e responsável e sob a forma de movimento social dedicado à luta contra a miséria e naturalmente como alternativa ao modo de produção dominante –o capitalismo.

Com a difusão da democracia como modelo de normalidade politica, a economia solidária torna-se cada vez mais atraente para os que almejam igualdade e justiça para suas comunidades.

Os seus partidários defendem em geral políticas econômicas inspiradas pelo keynesianismo, cujo objetivo maior é o pleno emprego e a eutanásia do rentista, o que significa o fim da hegemonia global do capital financeiro, que é o maior responsável pelas frequentes crises internacionais, das quais os trabalhadores são as principais vítimas.

O trágico fiasco que precipitou o fim pacífico da maioria dos regimes ditos comunistas abriu um imenso vazio ideológico, político e, por que não, ético que o novo papa Francisco começa a preencher em nome da Igreja Católica.

Por tudo isso, reconhecer a pancadaria ao redor de nossa política econômica como luta de classes é necessário para que o público que vai decidir essa parada nas urnas não seja levado a pensar que se trata de uma contenda entre peritos (experts em inglês) e jovens ingênuos que pouco entendem do que está em jogo.

Os que reagimos aos excessos do neoliberalismo temos em vista, acima de tudo, preservar e enriquecer a democracia em nosso país, como garantia de que a luta por uma sociedade mais justa poderá prosseguir até que seus frutos possam ser usufruídos por todos.

PAUL SINGER, 81, é secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Foi secretário municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Luiza Erundina)