O preconceito e a mediocridade – Walquiria Leão Rego

Na Carta Capital

O que seria a tal “porta de saída” que tantos cobram dos programas de renda?

A POBREZA sempre despertou sentimentos ambíguos e complexos. De um lado, por ser fonte de enormes preconceitos e estereótipos de parte das ditas elites. De outro, por indicar aos mais sensíveis que algo vai mal na sociedade. Contudo, na maioria das vezes, sua miopia ética e política opera invertendo a realidade dos pobres, pois os transforma em culpados de sua situação, partem da premissa de que todos os homens são autores de seu próprio destino, logo, a pobreza torna-se uma espécie de escolha existencial.

Os modos de no referirmos a esse sofisma barato variam muito e todos acreditam que sabem das razões da pobreza. Entretanto, o que permanece espantosamente vivo, ainda hoje, é a consciência preconceituosa, nuançada, mas eficaz politicamente. Ou seja, imputa-se facilmente aos pobres, de um modo ou outro, toda sorte de incompetência moral e é ela que legitima as pessoas superiores a dirigir-lhes a vida em todos os sentidos.

Por isso, a doação de cestas básicas faz tanto sucesso entre as classes média e alta, pois se determina nela o “consumo adequado”. Transferência pública de dinheiro é condenável como dano social, pois estimula a vagabundagem e a irresponsabilidade com a vida. Viviana Zelizer, socióloga norte-americana, mostra bem em seus trabalhos como é antiga a posição que rejeita veementemente a transferência pública de dinheiro, percebeu-a inclusive fortemente no interior das organizações de assistência aos pobres. Em suma, os caridosos manifestaram ao longo da história incompreensão total da importância do dinheiro como renda para permitir o desenvolvimento da liberdade e da autonomia dos indivíduos.

Nossas pesquisas demonstram que os pobres não pensam assim. Dona Amélia, da cidade de Pasmadinho, no Vale do Jequitinhonha, fala claramente: “A gente tem mais liberdade no dinheiro”

Por que tem mais liberdade?

“Porque a gente pode comprar mais o que quer, né? Porque o marido também tem mais liberdade, mas se vai comprar ele compra o que quer, e se for eu, compro o que eu quero.”

Infelizmente, a fala preconceituosa continua a repetir seus dogmas seculares. Os pobres são incapazes de razão prudencial, vão gastar o dinheiro inutilmente, pois não sabem consumir adequadamente os bens necessários à sua sobrevivência. Apenas se devem doar vales devidamente destinados a determinado bem, ou alimentos, remédios e roupas. Ao Estado, fundamentalmente, cabe discipliná-los. Por tudo isso, pesa sobre os pobres uma carga imensa de humilhação e sofrimento que acaba por transformá-los em pessoas destituídas de muitas das capacidades humanas, reclamadas exatamente pelos que as exploram e estigmatizam.

Há outra visão da questão: a pobreza é fruto de injustiças e desigualdades sociais iníquas. Se ela é socialmente produzida, pode também ser socialmente superada. Sua presença tem de ser objeto de visibilidade política e de debate público, pois sua solução não é simples. Torná-los visíveis significa resgatá-los como sujeitos humanos portadores de subjetividades diferenciadas, e por essa razão, não a única, converterem-se em objeto de políticas públicas cuidadosas e bem desenhadas, especialmente discutindo sua formulação com seus representantes legítimos.

No Brasil atual, por ocasião da entrada em vigor da política de transferência estatal de renda de grande amplitude espacial, o programa Bolsa Família, revivemos pela mídia, em artigos, cartas do leitor, e, às vezes, entrevistas de gente da universidade a repetição insistente dos velhos preconceitos. O Bolsa Família os acomodará na vida, os transformará em clientes eternos do Estado. No caso desse programa, misturaram-se em uma poção perversa os preconceitos contra os pobres e os estereótipos machistas contra as mulheres pobres, do tipo: agora elas vão se encher de filhos para não trabalhar e viver à custa do Estado.

Necessário anotar a existência nessa configuração ideológica de imputações negativas dirigidas aos pobres, às suas formas mais sutis, mas que não deixam de revelar a estrutura preconceituosa. O exemplo mais ardiloso comparece na fala “erudita” da “porta de saída” que o governo precisa criar urgentemente para essa gente, as bolsistas. Precisamos crescer economicamente, o que todos desejamos, contudo, o vício economicista persiste, ao associar crescimento econômico automaticamente com emprego e vida decente para todos. Nossa história nos desmente: tornamo-nos uma economia industrial e moderna e simultaneamente produzimos uma nação partida, habitada por brasileiros detentores de altas rendas e grandes privilégios e uma imensa maioria de pobres destituídos de quaisquer direitos.

Foi esse o saldo social da nossa grande industrialização. Não a utilizamos na construção de estruturas públicas massivas de qualidade, como boa escola pública, creches,generalização de postos de saúde, hospitais. Colocamos esses direitos inalienáveis fora de nossa gramática política e moral; destruiu-se e se tenta sempre liquidar qualquer possibilidade da expressão política organizada dos pobres. Foi o modo brasileiro de silenciá-los e assim torná los invisíveis. A renda monetária é um direito universal, confirma o direito à vida, prescrito na Constituição de 1988.

Diante disso, como exigir “portas de saída”, o que vem a ser isso? O discurso é claro, destinado àqueles que constituem, parafraseando Hannah Arendt, “povos sem Estado.” Ora, esse imenso contingente de seres humanos foi destituído de escolaridade, capacitações técnicas, cultura em sentido amplo. De nada adianta construir milhões de escolas se os professores permanecem ganhando salários vergonhosos, e também não podem se preparar para capacitar pessoas e formar cidadãos ativos.

No interior do Piauí, dona Inês nos dizia: “Dona, o cartão do Bolsa foi o único crédito que tive na vida, antes eu não tinha nada, agora os comerciantes confiam em mim. Tudo que se quer fazer na vida é com dinheiro, é pagando”.

Dona Inês entendeu bem a importância da monetarização das relações na vida social. No interior de Alagoas, no alto sertão, contou-nos um trabalhador que, quando conseguia trabalho – claro, temporário, sem nenhum direito -, ganhava menos que sua mulher recebia do Bolsa Família. Outro dizia que as jornadas de trabalho, quando apareciam, para algum bico, não conheciam limites. Então, continua a indagação: o que são as tais portas de saída celebradas pela mídia? Como as mulheres pobres, normalmente com escolaridade precária, vão ao trabalho, quando existe, se não existem creches, escolas em tempo integral para ali deixarem seus filhos? Dona Marina, do bairro de Manguba na periferia do Recife, nos disse:”Com o Bolsa agora posso ficar em casa cuidando de meus filhos; quando trabalhava, eles ficavam na rua, isso só fazia aumentar ainda mais minha aflição, pois não tenho onde deixar as crianças depois que saem da escola”.

*É professora titular de sociologia da Unicamp

7 comentários sobre “O preconceito e a mediocridade – Walquiria Leão Rego

  1. Pingback: O preconceito e a mediocridade | joaquim vai ao centro
  2. Fico triste e indignada quando pessoas criticam o benefício do bolsa família… pois muitas famílias são beneficiadas adquirindo autonomia e em muitos casos este é o único crédito que tiveram na vida, como é o caso da Sra. Inês da reportagem. Gostei muito da abordagem feita pela Walquíria Leão Rego – VALEU A PENA LER!!!

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    • Bolsa Família é bolsa vagabundo, assim como é CUBA, um país cheio de vagabundos. Por que a Professora não transfere a ótima renda dela para os pobres.
      Já viu a reportagem de um jornalista ao entrevistar uma mãe reclamando que não pode comprar uma calça de uma determinada marca para filha, pois o bolsa vagabundo que recebe é pouco?
      Viva em Cuba. Nos EUA, o indivíduo é incentivado a empreender e não a trabalhar.

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  3. Como dizia a grande Margaret Thatcher, o socialismo dura enquanto dura o dinheiro dos outros. No caso o nosso dinheiro, classe média trabalhadora e que não consegue sonegar imposto.

    Dar de mão beijada como benefício definitivo nunca ajudou ninguém, nem filho, nem povo e nem parente.

    Bolsa família é a institucionalização da compra de votos, dito pelo próprio Lula, assiste aí:

    Parabéns, socióloga paga pelo PT, fez um bom trabalho pelo que recebeu.

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    • Carlos Eduardo, esse seu discursinho é coisa típica de classe média, classe média que não sabe o que é fome, o que é ser explorado, o que é trabalhar 12 horas por dia embaixo de sol e chuva e receber centavos, classe média ignorante e cega.

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  4. Ficou claro pelo depoimentos de algumas pessoas, as suas insatisfaçoes referente ao tema abordado, como ficou claro pra mim, que ainda exista tantas pessoas que nao entendem nada sobre o valor da vida!pois bem, um exemplo quem tem mais facilidade de se capacitar em todas as areas da vida? capacidade intelectual,capacidade economica,capacidade fisica” saúde ” O POBRE QUE NAO ESCOLHEU SER POBRE OU O RICO QUE TAMBEM NAO ESCOLHEU SER RICO. coloca os dois nascido no mesmo dia e no mesmo ano na mesma cidade…mais com suas vidas totalmente gerenciadas pelos seus pais! te pergunto quem tera suas oportunidade frustradas, quem tera suas oportunidades escancaradas!precisamos entender que sao pessoas iguais as outras!
    precisamos nos colocarmos no lugar das outras pessoas antes de tudo.

    fica uma refrexao se voce podesse escolher voce escolheria ser quem!!!!!!!!???????

    FICA MINHA POSICAO QUANTO AO TEMA SOU AFAVOR DE TUDO QUE VENHA MINIMIZAR, O SOFRIMENTO DE PESSOAS DESFAVORECIDAS, MUITAS DAS VEZES PELAS CIRCUNTANCIAS DA VIDA. SOU AFAVOR DE TODOS OS TIPOS DE BOLSAS!

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