Carta Capital também critica o governo federal e o PT

b5f56a18-48d9-43a2-afe0-9a0e9a3c7f3a

Só a ideia sobrou

Errou quem pensou que o partido de Lula pudesse ser revolucionário e anticapitalista. Difícil teria sido imaginar o PT de hoje

por Mino Carta na Carta Capital

O PT nasceu da cabeça de Lula, sei disso desde começos de 1978, mas é possível que a ideia fosse mais antiga. Em todo caso, antes da reforma partidária excogitada pelo general Golbery, a viabilizar a ideia-anseio do então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.

Continuar lendo

Publicidade

Adversárias, Globo e Veja se unem em defesa da grande mídia golpista

Vejam o editorial da Carta Capital de 16 de maio de 2012, de Mino Carta:

Eternos chapa-branca

Em patético editorial, O Globo exibe a sua verdadeira natureza e a mídia nativa

O jornal O Globo toma as dores da revista Veja e de seu patrão na edição de terça 8, e determina: “Roberto Civita não é Rupert Murdoch”. Em cena, o espírito corporativo. Manda a tradição do jornalismo pátrio, fiel do pensamento único diante de qualquer risco de mudança.

Desde 2002, todos empenhados em criar problemas para o governo do metalúrgico desabusado e, de dois anos para cá, para a burguesa que lá pelas tantas pegou em armas contra a ditadura, embora nunca as tenha usado. Os barões midiáticos detestam-se cordialmente uns aos outros, mas a ameaça comum, ou o simples temor de que se manifeste, os leva a se unir, automática e compactamente.

Não há necessidade de uma convocação explícita, o toque do alerta alcança com exclusividade os seus ouvidos interiores enquanto ninguém mais o escuta. E entra na liça o jornal da família Marinho para acusar quem acusa o parceiro de jornada, o qual, comovido, transforma o texto global na sua própria peça de defesa, desfraldada no site de Veja. A CPI do Cachoeira em potência encerra perigos em primeiro lugar para a Editora Abril. Nem por isso os demais da mídia nativa estão a salvo, o mal de um pode ser de todos.

O autor do editorial 
exibe a tranquilidade de Pitágoras na hora de resolver seu teorema, na certeza de ter demolido com sua pena (imortal?) os argumentos de CartaCapital. Arrisca-se, porém, igual a Rui Falcão, de quem se apressa a citar a frase sobre a CPI, vista como a oportunidade “de desmascarar o mensalão”. Com notável candura evoca o Caso Watergate para justificar o chefe da sucursal de Veja em Brasília nas suas notórias andanças com o chefão goiano. Ambos desastrados, o editorialista e o líder petista.

Abalo-me a observar que a semanal abriliana em nada se parece com o Washington Post, bem como Roberto Civita com Katharine Graham, dona, à época de Watergate, do extraordinário diário da capital americana. Poupo os leitores e os meus pacientes botões de comparações entre a mídia dos Estados Unidos e a do Brasil, mas não deixo de acentuar a abissal diferença entre o diretor deVeja e Ben Bradlee, diretor do Washington Post, e entre Policarpo Jr. e Bob Woodward e Carl Bernstein, autores da série que obrigou Richard Nixon a se demitir antes de sofrer o inevitávelimpeachment. E ainda entre o Garganta Profunda, agente graduado do FBI, e um bicheiro mafioso.

Recomenda-se um mínimo de apego à verdade factual e ao espírito crítico, embora seja do conhecimento até do mundo mineral a clamorosa ignorância das redações nativas. Vale dizer, de todo modo, que, para não perder o vezo, o editorialista global esquece, entre outras façanhas deVeja, aquele épico momento em que a revista publica o dossiê fornecido por Daniel Dantas sobre as contas no exterior de alguns figurões da República, a começar pelo presidente Lula.

Anos de chumbo. O grande e conveniente amigo chamava-se Armando Falcão

Concentro-me em outras miopias deO Globo. Sem citar CartaCapital, o jornal a inclui entre “os veículos de imprensa chapa-branca, que atuam como linha auxiliar dos setores radicais do PT”. Anotação marginal: os radicais do PT são hoje em dia tão comuns quanto os brontossauros. Talvez fossem anacrônicos nos seus tempos de plena exposição, hoje em dia mudaram de ideia ou sumiram de vez. Há tempo CartaCapital lamenta que o PT tenha assumido no poder as feições dos demais partidos.

Vamos, de todo modo, à vezeira acusação de que somos chapa-branca. Apenas e tão somente porque entendemos que os governos do presidente Lula e da presidenta Dilma são muito mais confiáveis do que seus antecessores? Chapa-branca é a mídia nativa e O Globo cumpre a tarefa com diligência vetusta e comovedora, destaque na opção pelos interesses dos herdeiros da casa-grande, empenhados em manter de pé a senzala até o derradeiro instante possível.

Não é por acaso que 64% dos brasileiros não dispõem de saneamento básico e que 50 mil morrem assassinados anualmente. Ou que os nossos índices de ensino e saúde públicos são dignos dos fundões da África, a par da magnífica colocação do País entre aqueles que pior distribuem a renda. Em compensação, a minoria privilegiada imita a vida dos emires árabes.

Chapa-branca a favor
 de quem, impávidos senhores da prepotência, da velhacaria, da arrogância, da incompetência, da hipocrisia? Arauto da ditadura, Roberto Marinho fermentou seu poder à sombra dela e fez das Organizações Globo um monstro que assola o Brazil-zil-zil. Seu jornal apoiou o golpe, o golpe dentro do golpe, a repressão feroz. Illo tempore, seu grande amigo chamava-se Armando Falcão.

Opositor ferrenho das Diretas Já, rejubilado pelo fracasso da Emenda Dante de Oliveira, seu grande amigo passou a atender pelo nome de Antonio Carlos Magalhães. O doutor Roberto em pessoa manipulou o célebre debate Lula versus Collor, para opor-se a este dois anos depois, cobrador, o presidente caçador de marajás, de pedágios exorbitantes, quando já não havia como segurá-lo depois das claras, circunstanciadas denúncias do motorista Eriberto, publicadas pela revista IstoÉ, dirigida então pelo acima assinado.

Pronta às loas mais desbragadas a Fernando Henrique presidente, com o aval de ACM, a Globo sustentou a reeleição comprada e a privataria tucana, e resistiu à própria falência do País no começo de 1999, após ter apoiado a candidatura de FHC na qualidade de defensor da estabilidade. Não lhe faltaram compensações. Endividada até o chapéu, teve o presente de 800 milhões de reais do BNDES do senhor Reichstul. Haja chapa-branca.

Impossível a comparação entre a chamada “grande imprensa” (eu a enxergo mínima) e o que chama de “linha auxiliar de setores radicais do PT”, conforme definem as primeiras linhas do editorial deO Globo. A questão, de verdade, é muito simples: há jornalismo e jornalismo. Ao contrário destes “grandes”, nós entendemos que a liberdade sozinha, sem o acompanhamento pontual da igualdade, é apenas a do mais forte, ou, se quiserem, do mais rico. É a liberdade do rei leão no coração da selva, seguido a conveniente distância por sua corte de hienas.

Acreditamos também que entregue à propaganda da linha auxiliar da casa-grande, o Brasil não chegaria a ser o País que ele mesmo e sua nação merecem. Nunca me canso de repetir Raymundo Faoro: “Eles querem um País de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo”. No mais, sobra a evidência: Roberto Civita é o Murdoch que este país pode se permitir, além de inventor da lâmpada Skuromatic a convocar as trevas ao meio-dia. Temos de convir que, na mídia brasileira, abundam os usuários deste milagroso objeto.

Ciência e religião – Mino Carta

As caridosas e sábias lições do cardeal Carlo Maria Martini

Editorial da Carta Capital de 18 de abril de 2012, por Mino Carta

Sou filho de um anticlerical agnóstico e de uma católica praticante. Meu pai, que poderia ser visto pelos anjos como “homem de boa vontade”, não hesitou em matricular os dois filhos no curso primário do colégio genovês das marcelinas, por serem elas, em plena Segunda Guerra Mundial, antifascistas. Tenho das freiras lembrança saudosa, embora as aulas de catecismo e relativas provas não fossem de pura diversão. Outras coisas valiosas aprendi com elas, e neste aprendizado não incluo o fato de ter sido competente coroinha, presa de uma ponta de exibicionismo a bem do justo exame de consciência.

A lição paterna, de todo modo, influenciou bem mais meus comportamentos do que a de minha mãe, e assim esclareço por que meu propósito é tocar em assuntos a envolverem fé religiosa e atitudes eclesiásticas. Espanta-me, confesso, que ao cabo de oito anos de debates, o Supremo Tribunal Federal somente agora decida se grávidas de fetos sem cérebro podem abortar sem risco de acabarem presas. E falamos de seres destinados ao oblívio em vida.

Quando, candidata à Presidência da República, Dilma Rousseff aventou a possibilidade da descriminalização do aborto, foi grita geral. A ex-guerrilheira ousava além da conta e a ideia foi rapidamente abortada. Há muito tempo o aborto deixou de ser crime nos países mais civilizados e democráticos do mundo. Na Itália, cujo Estado e cuja Justiça foram afrontados pelo governo brasileiro no Caso Battisti, o aborto foi descriminalizado na década de 70, na época em que, segundo o ex-ministro Tarso Genro e eminentes juristas nativos, a Península era dominada por um governo de extrema-direita contra quem se insurgiam heróis da resistência como Cesare Battisti. Diante disso, o arco da velha descoloriu.

Não sei o que se pode esperar do nosso Supremo. Mas que aquela questão esteja em pauta, e em uma versão que não aceita perplexidades, é de pasmar. Leio um pequeno livro que a Editora Einaudi acaba de lançar na Itália, registra o diálogo entre o cardeal Carlo Maria Martini, figura extraordinária que concorreu à vaga papal com o então cardeal Ratzinger no Consistório de 2005, e o cientista Ignazio Marino. Observa Martini que a postura negativa e apriorística da Igreja diante das mudanças provocadas pelo progresso e pela técnica nunca foi bem-sucedida. Galileu docet, ensina, acrescenta.

Martini não tem dúvidas, e nem pode tê-las à luz da sua fé: na hora em que o espermatozoide penetra o óvulo, a vida começa. É como o toque de dedos entre Deus e Adão no afresco da Sistina. O Brasil é, porém, um Estado laico, nele quem professa algum credo religioso tem a mesma liberdade de decidir o destino da gravidez quanto o tem quem não professa credo algum. O professor Safatle escreveu a respeito uma coluna magistral há quatro semanas. E nem se fale da situação agora entregue à decisão do STF. No caso, mandam a lógica, a razão, o senso comum, por cima das crenças ou da falta delas.

Há inúmeros momentos exemplares no diálogo entre o cardeal e o cientista. Por exemplo. Pergunta Marino: “Não seria razoável encaminhar com urgência um debate internacional em busca de um equilíbrio entre o mundo da ciência e as diversas sensibilidades éticas e religiosas, superando com honestidade intelectual as atitudes dogmáticas?” Responde Martini: “Parece-me evidente que não podemos deixar de ouvir os cientistas (…), por isso é desejável que a discussão ocorra de forma serena e construtiva, não somente no que tange às células-tronco, mas, em geral, a respeito de temas éticos que com razão agitam almas e consciências”.

O cardeal não evita discorrer acerca da sexualidade, “campo obscuro, profundo, magmático, difícil de definir, parte da existência onde entra em jogo o subconsciente (ou o inconsciente?) e onde as explicações racionais podem defrontar-se, tanto no plano individual quanto no de grupos sociais e nas culturas, com uma resistência interior que não se deixa convencer”. Segundo Martini, existem dentro de cada um “cavernas obscuras e labirintos impenetráveis”. De mais a mais, “o filão evolutivo que inclui o homem não se esgotou, de sorte que não podemos prever facilmente os desenvolvimentos dos próximos milênios”. Temos, portanto, um cardeal evolucionista.

E vem à tona uma questão crucial, o homossexualismo. E o cardeal pronuncia algo inédito em relação às posições de sua Igreja. Ele se diz pronto a admitir que “a boa-fé, as experiências de vida, os hábitos adquiridos, o inconsciente e provavelmente alguma inclinação de nascimento podem levar à escolha de uma vida em parceria com alguém do mesmo sexo”. Diz ainda: “No mundo atual, esse gênero de comportamento não se presta, portanto, a ser demonizado ou condenado”.

Não consigo escapar a uma derradeira reflexão: o mundo de hoje não mereceria um papa Martini em vez de um papa Ratzinger? Certas desventuras, infelizmente, não acontecem por acaso.

“Tínhamos Chico Anysio, temos o Big Brother. Tínhamos Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Jorge Amado, temos Paulo Coelho” – Mino Carta

“Os pensadores agora atendem pelo sobrenome de Magnoli ou Mainardi, e já foram Gilberto Freire, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Hollanda. Ao sair do curso noturno da Faculdade do Largo de São Francisco comprava a Última Hora e no bonde, de volta para casa, lia Nelson Rodrigues, com sua A Vida como Ela É, como anos após leria Stanislaw Ponte Preta a falar do Febeapá, o festival de besteiras que assola o país.”

Mino Carta, no editorial da Carta Capital de 04 de abril de 2012

Sessenta anos depois – Mino Carta

“O petróleo é nosso”. Esta batalha os vetustos donos do poder perderam. Foto: José Vieira Trovão / Ag. Petrobras

Da Carta Capital

Há 60 anos, estudante de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, cheguei a me sentir pessoalmente atingido pelos editoriais dos jornalões. Mania de grandeza, a minha. A velha e sempre nova academia tornara-se um centro importante das manifestações que agitavam o País consciente à sombra do lema “O Petróleo É Nosso”. Bandeira altiva e justa, desfraldada na perspectiva de um futuro que imaginávamos muito próximo. A mídia reagia enfurecida, clamava contra tamanho atrevimento, forma tola de nacionalismo a ignorar a nossa incompetência e nossos compromissos internacionais.

Os jornalões mastigavam fel diante de um duplo desafio: contra as irmãs do petróleo e, pior ainda, contra o império americano em plena Guerra Fria, contra aquele Tio Sam chamado pelo Altíssimo a nos defender da ameaça marxista-leninista. Era a irredutível vocação de súdito-capacho pronunciada com a pompa do estilo cartorial, próprio dos editoriais daquele tempo, e deste até.

Nos jornais de hoje leio que a direção da Petrobras foi trocada pela presidenta Dilma, insatisfeita com a gestão e determinada a controlar mais de perto o desempenho da estatal. Onde será que os perdigueiros das redações colhem informações? Antes de incomodar meus pacientes botões, anoto a observação de um amigo: “Na própria reunião de pauta”. Ou seja, antes de sair a campo, o perdigueiro sabe, pela ordem da chefia, o que haverá de contar aos amáveis leitores.

Da boca de Lula já ouvi a seguinte consideração: “Se o presidente da República conta no máximo com oito anos de mandato, por que o diretor de uma estatal deveria ter mais?” A troca da guarda na Petrobras estava decidida há tempo, mas a presidenta Dilma não tem motivo algum de insatisfação a respeito da gestão de José Sergio Gabrielli. É do conhecimento até do mundo mineral que, sob o comando de Gabrielli, o valor de mercado da Petrobras fermentou de 14 bilhões de dólares para 160, o pré-sal foi descoberto e o Brasil tornou-se o 11º produtor de petróleo do mundo. Segundo The Economist, por essa trilha chega a quinto até 2020.

As pedras sabem também que Dilma Rousseff, depois de ocupar a pasta de Minas e Energias no primeiro mandato de Lula, ao assumir a Casa Civil passou a acumular a presidência do Conselho de Administração da Petrobras e manteve estreita ligação com Gabrielli. Talvez a mídia nativa continue aquém do mundo mineral. Reconheça-se, contudo, a sua coerência. Ao longo dos últimos 60 anos, o petróleo ficou claramente nosso e a Petrobras tornou-se uma realidade empolgante, mas a mídia não mudou. Em relação a estas questões, a sua contrariedade se mantém, além de transparente, patética.

Por 60 anos a fio, os barões do jornalismo não perderam a oportunidade de tomar o partido do Tio Sam e das irmãs do petróleo até ensaiar a revanche ao propor a privatização da nossa estatal. Devemos atribuir a um milagre o fato de que Fernando Henrique não tenha atendido aos insistentes, poderosos pedidos. Certo é que a tentação o roçou perigosamente. Quem sabe caiba um agradecimento especial a Nossa Senhora Aparecida se os editorialões acabaram por cair no vazio.

Agrada-me recordar 1952 e aquele fervor juvenil. Ali nasceu a Petrobras com a chancela de Getúlio Vargas, figura contraditória de estadista manchada pelo período ditatorial e valorizada pela visão do futuro, partilhada, por exemplo, pela juventude do Largo de São Francisco. Getúlio era então o presidente eleito, empenhado em firmar os caminhos da industrialização inaugurados por obras como Volta Redonda, as Leis do Trabalho, a criação do salário mínimo. A imprensa só enxergava então os riscos da mudança, ameaça para tudo aquilo que representava. A Petrobras seria mais um pecado getulista, a ser pago, juntamente com os demais, pelo tiro que ecoou no Catete na manhã de um dia de agosto de 1954. Ocorre-me que o desespero do suicida tenha aflorado com prepotência ao perceber a resistência insana dos vetustos donos do poder e ao imaginar por isso um futuro bem mais distante do que esperavam os moços do Largo.

Democracia e capitalismo – Mino Carta

Na Carta Capital

No final de 2008 pareceu que o segundo muro havia ruído 19 anos após a queda do primeiro em Berlim. Este para selar o colapso do chamado socialismo real, aquele da main street do capitalismo para precipitar o enterro do neoliberalismo. Enganaram-se os esperançosos analistas, apressados. O célebre wall resistiu e o mercado prosseguiu no comando, perdão, o MERCADO, deus último e famigerado.

A hora trágica da incompatibilidade

Leio um texto exemplar de Carlo Azeglio Ciampi, límpido funcionário do Estado, ex-presidente do Banco Central da Itália, ex-primeiro-ministro, ex-presidente da República. Diz ele: “Desafiaram a lei moral que permite distinguir a comunidade humana da selva (…) fizeram da finança, aquela que, conforme os manuais de economia, está a serviço da produção, da troca, do desenvolvimento, uma selva onde se satisfazem apetites ferinos, onde impera a lei não escrita do desprezo por todos os valores, afora o ganho, o sucesso, o poder”.

Ciampi fala de uma tormenta que dura há três décadas e confere ao capitalismo “um rosto desumano”. A crise global atiça, em diferentes instâncias, o debate sobre o estágio atual do capitalismo. Das lideranças das forças produtivas aos intelectuais de diversos calibres e aos analistas de publicações de alto nível, como The Economist, Foreign Affairs, Financial Times. Em questão, o modelo político e econômico ocidental, a partir de mudanças consolidadas. A globalização com seus efeitos mais recentes, por exemplo. Ou o galope do avanço tecnológico.

É do conhecimento até do mundo mineral que conseguimos globalizar a desgraça ao aprofundar os desequilíbrios entre ricos e pobres em todas as latitudes de uma forma bastante peculiar. Deixemos de lado o Brasil, reservado, como se diz de certos elementos de receitas culinárias. Sobram países pobres, ou mesmo paupérrimos, e que continuam como tais, e países ricos cada vez mais empobrecidos. A constatação inevitável nos leva a validar a tese de que a riqueza foi transferida para algumas corporações e seus mandachuvas. São eles os donos do mundo. A senhora Merkel, o senhor Sarkô, tentam se dar ares de superioridade, mas não convencem.

É a vitória dos especuladores e de -suas artimanhas, e não era com isso que sonhava Adam Smith. Ou, muito tempo antes, o banqueiro genovês que financiou a construção dos barcos destinados ao transporte das tropas da Primeira Cruzada. As consequências do neoliberalismo, deste selvagem fundamentalismo, não põem em xeque somente o sistema econômico mundial, mas também a própria democracia, a qual não se satisfaz com a -liberdade para buscar a igualdade. Ao menos, a igualdade de oportunidades.

O mundo mineral continua a confirmar o senhor De La Palisse. O neoliberalismo promove o predador espertalhão, ou, por outra, a lei da selva, a acentuar a desigualdade. E onde fica a democracia? Daí a preocupação de quem ainda a considera indispensável à realização de uma sociedade que se pretenda justa. Chegou a hora de retirar o Brasil da reserva em que me permiti colocá-lo, à espera de completar a receita. O Brasil tende a sofrer menos com a crise, talvez muito menos, do que a turma outrora seleta do ex-Primeiro Mundo.

O País deu e dá importantes passos à frente nos últimos nove anos. Começa finalmente a aproveitar suas extraordinárias potencialidades, os generosíssimos presentes da natureza, graças a governos contrariados pela desigualdade. Como haveria de ser, aliás, todo capitalista consciente das suas responsabilidades de cidadão de uma nação democrática. Podemos crer que, de fato, somos uma nação democrática?

O Brasil é, a seu modo, um caso à parte, como alguns outros países. Carecemos da passagem pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. A dita elite brasileira é uma das mais atrasadas do mundo. Nunca usufruímos de um Estado de Bem-Estar Social e os sistemas da indiscutível atribuição estatal, educação, saúde e transporte público, são além de bisonhos. São Paulo tem a segunda maior frota de helicópteros do mundo e uma enorme área do País não conta com saneamento básico. Nesta moldura, a democracia há de lutar bravamente para se afirmar.

A vantagem quem sabe esteja no seguinte ponto: a democracia perde terreno para tantos que a conheceram e praticaram, nós temos largo espaço à frente para conquistá-la.

A culpa é da maçã – Mino Carta da Carta Capital

Um jurista italiano, Guido Rossi, escreveu no começo do terceiro milênio um livro intitulado Il Gioco delle Regole, o jogo das regras, que infelizmente não foi traduzido no Brasil. Não é muito volumoso, mas naquelas pouco mais de cem páginas conta-se uma história a seu modo assustadora, não sei se de suspense ou de terror.

Não se trata, a rigor, de uma revelação, o enredo está ao alcance de quem for medianamente atento às coisas do mundo. Ocorre, porém, que Rossi registra com precisão ao conectar fatos, ao fornecer números e ao tirar conclusões. Eis aí, donas do planeta são 80 corporações que alongam seus tentáculos em todas as direções. Senhoras incontestes, e os governos nacionais agem na melhor das hipóteses, como seus sátrapas. Elas determinam e eles se adéquam. Adaptam-se. Conformam-se. Se preferirem, executam.

Permito-me recear, de vez em quando, que o entrecho comece pela maçã da árvore do Bem e do Mal. Naquele arrepiante momento provocado pela serpente o homem se teria evadido do esquema traçado pela natureza, se quiserem pelo Criador. De fato, Adão e Eva foram sumariamente enxotados do Paraíso Terrestre pelo anjo de espada desembainhada. Diz a Bíblia que Deus vaticinou para os expulsos sangue, suor e lágrimas, para ser imitado, muito tempo depois, por Winston Churchill. Avento a hipótese, não sem ousadia herética, que o Altíssimo tenha anunciado, enquanto o casal se afastava de carreira, a intenção de lavar as mãos em relação ao destino dos enxotados.

O homem estava fora do desenho perfeito e, nesta linha, o neoliberalismo imposto ao mundo pelos donos efetivos do poder globalizado é o último efeito da ingestão da maçã maligna. Perceba-se o que ocorreu neste penoso ano de 2011, e continua a ocorrer sem previsão quanto ao desfecho da crise mundial: os governos nacionais repetem os erros cometidos em 2008, na primeira onda do terremoto, agravados dramaticamente pela repetição, em obediência aos interesses dos inoxidáveis donos do poder real.

Muito antes de 2008 citei Rossi neste espaço. Depois, e mais de uma vez, fiz referência ao documentário Inside Job, ganhador do Oscar, exibia os rostos de muitos entre os responsáveis pelo desastre que permaneceram em seus postos de comando como se merecessem promoção. A segunda onda do terremoto transcende em virulência a primeira e ameaça causar danos maiores do que o craque de 1929. Habilita-se a tragar o euro sem deixar de globalizar a tragédia.

Medidas draconianas são tomadas na Europa na tentativa de salvar a moeda, com 60% de chances de êxito, na avaliação da The Economist. Nenhuma dessas previdências recorda o New Deal de Franklin Delano Roosevelt e John Maynard Keynes (leia nesta edição especial o retrato que Luiz Gonzaga Belluzzo traça da incomparável personagem e de sua influência no enfrentamento da crise de 29). E como poderiam?

A linha adotada então conferiu ao Estado um papel soberano e se pautou pela equidade no empenho em promover emprego e taxar os ricos. Ações que carregam, digamos assim, o cheiro acre, demoníaco do enxofre, aos narizes dos representantes das corporações financeiras, muitos deles instalados no leme de economias regionais e nacionais. Nas circunstâncias, mais funcionam hoje as ações entre amigos, e a tal de equidade que se moa.

Não há escape possível sem retorno ao senso perdido, e não somente no campo dominante da política econômica onde vigora o princípio de que, -desamparada da produção de bens e serviços, a de -dinheiro, simplesmente, basta ao garantir a felicidade de poucos. O senso significa, em geral, restabelecer o exato valor da moeda, ao sabor de antigas fórmulas de comprovada eficácia, adaptadas aos dias de hoje, está claro, fiéis, porém, na essência, a conceitos inextinguíveis.

Florins, dracmas, sestércios, coroas, libras assumiram valores atrabiliários ao sabor de conveniências contingentes, de modas e vezos passageiros, de manias e obsessões arbitrárias. O desvario varre todas as áreas das manifestações humanas igual a um ciclone. Digamos, da arte ao futebol, no enterro do espírito crítico e do bom gosto, da ética e da consciência do efêmero. E no aprofundamento dos desequilíbrios sociais, voragem entre ricos e pobres.

O Brasil não escapa, a despeito de alguns importantes avanços quanto a essas diferenças, assim como não escapa à crise econômica mundial, cujos efeitos surgem com nitidez neste final de 2011. Há bons motivos, contudo, para crer que as consequências serão menos graves para nós do que para muitos companheiros da áspera jornada. Devemos a confiança em primeiro lugar ao próprio Brasil, único pelas dádivas da natureza, distante ainda de ser o que merece, mas destinado, finalmente, ao futuro há tempo profetizado.

Há motivos outros. O País vive uma mudança evidente, que só a mídia finge não perceber, a envolver o estilo de governo, de Lula primeiro e de Dilma Rousseff agora. No entendimento de –CartaCapital, a eleição do operário à Presidência da República é o divisor de águas, antes ainda das realizações dos seus dois mandatos. Temos razões de satisfação por ter tomado partido a favor de Lula em 2002 e 2006, e por Dilma em 2010. Ao cabo de um ano de governo, a presidenta mostrou a que veio. Com sua determinação, energia, senso de responsabilidade, qualidades transparentes e indiscutíveis.

Com Dilma, o Brasil não perdeu em prestígio internacional, pelo contrário o ampliou. Em termos econômicos, mesmo um crescimento bastante inferior ao dos dois anos precedentes é raro na atual conjuntura global. Como se deu com Lula, a presidenta foi alvo constante do denuncismo midiático com resultado oposto àquele visado pelos barões do jornalismo nativo e dos seus sabujos. A cada tentativa de colocar o governo em dificuldade a popularidade de Dilma fermenta. Em 2011 jornalões e revistonas especializaram-se na técnica abstrusa do furo n’água. •