A Paixão segundo Marx

Hoje na Folha de S. Paulo

O turismo religioso a Jerusalém era lucrativo. A crise culminou quando Jesus ousou bagunçar a entrada do templo. Xingou, revirou bancas. Foi executado

Jesus chegou a Jerusalém no Domingo de Ramos, que aliás então nem se chamava assim: afora sábado, nenhum dia tem nome na semana judaica.

Aristocratas saduceus (grupo de judeus de então) logo detectaram pregação subversiva: forasteiro com intenção de criar mais uma seita? Como se já não lhes bastasse aturar fariseus demagogos, essênios santarrões e zelotes fanáticos! Viria agora perturbação no modus vivendi tão custosamente negociado com os dominadores romanos?

Herodes continuava sibarítico rei da Judeia. Precisava apenas pagar a Roma parte dos impostos que arrecadava. A eles, saduceus, cabia proveitosa exploração comercial da peregrinação. Atração turística suprema no país, o templo magnífico estimulava a economia local, sobretudo na Páscoa.

Em termos políticos de hoje, saduceus e fariseus representariam a direita nacionalista, fascista, teocrática. Jesus, a esquerda universalista, democrática, até secularista (“a César…”). Referia como iguais os samaritanos, que os conservadores detestavam como hereges. Assistia mendigos, escravos, leprosos, até mulher do mau passo (“vai, e não peques mais”).

A crise culminou quando Jesus ousou bagunçar a lucrativa bolsa de câmbio instalada na entrada do templo. Ali afluíam peregrinos com moedas provindas do comércio nas lonjuras. Iam trocá-las para pagar incenso, animais dos sacrifícios rituais, bordéis, hospedagem, refeições. (Quem terá pago a Santa Ceia?)

Jesus vociferou contra a profanação. Xingou cambistas, revirou bancas, esparramou moedas escadaria abaixo.

Foi a conta. O sumo sacerdote convocou reunião de emergência do Sinédrio, que logo condenou à morte o Messias impostor.

Problema: execução era privilégio romano. Seria preciso, portanto, sanção do governador Pilatos. Levá-lo a crer, por exemplo, que o subversivo Jesus ambicionava ser rei da Judeia.

A Pilatos pouco importava quem fosse rei, desde que pagasse em dia. Percebeu a intriga e seus interesses. Mas, enfim, convinha manter a paz do status quo. Sem dizer que crucificação era um dos poucos divertimentos naquela cidade de bárbaros que nem circo tinha. Condenou.

Mesmo aturdidos, os apóstolos conseguiram se reorganizar em uma seita marginal chefiada por Tiago, um dos irmãos de Jesus. Pedro, obtuso e obstinado, preferia o cristianismo como seita judaica, interdita a incircuncisos.

Mas Paulo discordou resolutamente. (Só patrícios romanos tinham sobrenome; a qualificação “de Tarso” é gentílica.) Converter o mundo em reino de Cristo requeria sobretudo aliciamento das massas de plebeus e escravos do império romano. Embora miseráveis, sabia Paulo, a maioria deles não se sujeitaria a mutilar o pênis pela esperança de entrar no céu.

Três séculos depois, o imperador Constantino (272-337), hoje santo, admitia: o futuro estava mesmo naquele contagioso delírio coletivo. Mais astuto que reprimi-lo seria cooptar para o império aquela cruz, a infâmia sublimada em glória.


ALDO PEREIRA, 79, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha aldopereira.argumento@uol.com.br

A primeira pedra – Luis Fernando Verissimo

Publicado hoje em vários jornais do país.

E os fariseus trouxeram a Jesus uma mulher apanhada em adultério e perguntaram a Jesus se ela não deveria ser apedrejada até a morte, como mandava a lei de Moisés. E disse Jesus: “Aquele entre vós que estiver sem pecado que atire a primeira pedra”. E a vida da mulher foi poupada, pois nenhum dos seus acusadores era sem pecado. Assim está na Bíblia, evangelho de São João 8, 1 a 11.
Mas imagine que a Bíblia não tenha contado toda a história. Tudo o que realmente aconteceu naquela manhã, no Monte das Oliveiras. Na versão completa do episódio, um dos fariseus, depois de ouvir a

frase de Jesus, pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Eu estou sem pecado!”.

– Pera lá – diz Jesus, segurando o seu braço. – Você é um adúltero conhecido. Larga a pedra.

– Ah. Pensei que adultério só fosse pecado para as mulheres – diz o fariseu, largando a pedra.

Outro fariseu junta uma pedra do chão e prepara-

se para atirá-la contra a mulher, gritando: “Nunca cometi adultério, sou puro como um cordeiro recém-nascido!”.

– Falando em cordeiro – diz Jesus, segurando o seu braço também – e aquele rebanho que você foi encarregado de trazer para o templo, mas no caminho desviou dez por cento para o seu próprio rebanho?

– Nunca ficou provado nada! – protesta o fariseu.

– Mas eu sei – diz Jesus. – Larga a pedra.

Um terceiro fariseu pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a adúltera, dizendo: “Não só não sou corrupto como sempre combati a corrupção. Fui eu que denunciei o escândalo da propina paga mensalmente a sacerdotes para apoiar os senhores do templo”.

– Mas foste tu o primeiro a receber propina – diz Jesus, segurando seu braço.

– No meu caso, foi

para melhor combater a corrupção!

– Larga a pedra.

Um quarto fariseu junta uma pedra do chão e

prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: “Não tenho pecados, nem da carne, nem de cupidez ou ganância!”.

– Ah, é? – diz Jesus, segurando o seu braço. – E aquela viúva que exploravas, tirando-lhe todo o dinheiro?

– Mas isto foi há mui-

to tempo, e a mulher já morreu.

– Larga a pedra, vai.

E quando os fariseus se afastam, um discípulo pergunta a Jesus:

– Mestre, que lição podemos tirar deste episódio?

– Evitem a hipocrisia e o moralismo relativo – diz

Jesus.

E, pensando um pouco mais adiante:

– E, se possível, a política partidária.