Sujeitos ainda ocultos – Entrevista com Leonardo Avritzer e Filgueiras na Carta Capital

Na Carta Capital de 07/03/2012

Segundo os especialistas da UFMG, o Brasil precisa aprender a também punir os corruptores

CRIADO EM 2006, o Centro de Referência do Interesse Público, ligado à Universidade Federal de Minas Gerais, tornou-se um núcleo reconhecido de estudos sobre democracia e Estado. Um de seus temas preferenciais é a compreensão dos fenômenos da corrupção. Para quem não aguenta mais a maneira infantil e rasa com que o assunto costuma ser tratado pela mídia e por alguns bunkers acadêmicos considerados bem-pensantes, os trabalhos do Centro são um oásis. Corrupção e Sistema Político no Brasil, uma coletânea de artigos de especialistas variados, comprova outra vez a excelência do Centro. Os organizadores do livro, Leonardo Avritzer e Fernando Filgueiras, concederam a seguinte entrevista.

Ver completa:

Carta Capita: Os brasileiros avaliam em pesquisas de opinião a corrupção como muito grave, mas essa percepção nao parece pesar na hora do voto. Ou não da maneira como parte dos formadores de opinião desejaria. Por quê? Qual a compreensão dos eleitores a respeito?

Leonardo Avritzer: Em primeiro lugar, vale a pena destacar que houve uma forte mudança na cultura política no Brasil dos anos 1960 e 1970, quando se falava no “rouba mas faz” e se votava em Paulo Maluf, para os dias de hoje. A população brasileira avalia a corrupção como grave ou muito grave em 74% das respostas da pesquisa por nós aplicada e que deu origem ao livro. Vale a pena pensar, porem, por que uma posição contundente como essa não influencia o voto. O mais provável é que a tradição do voto em quem vai ganhar ou em quero é muito conhecido, especialmente para os legislativos locais, ainda seja a principal determinante do voto. Ainda não fizemos a transição de certa indignação difusa com a corrupção para uma situação de o eleitor perceber que ele tem um papel em escolher melhor os seus candidatos.

CC: O discurso anticorrupção rende votos? E m que medida? Por que temos sido dominados por um discurso udenista? Fernando Filgueiras: Existe um discurso udenista que procura ressaltar a moralidade e a perspectiva da corrupção no oponente. É uma estratégia antiga no Brasil, mas que no momento atual não tem rendido votos suficientes para a vitória da oposição. O discurso mobilizando a corrupção até levou a última eleição presidencial ao segundo turno e criou dificuldades para o atual governo. O eleitor percebe, no entanto, a corrupção em uma dimensão mais sistêmica, em que ela não depende apenas da condição moral dos políticos, mas da organização do sistema como um todo. Acredito que esta seja a grande novidade a respeito do processo da corrupção no Brasil. Ela não está no político individualmente, mas na organização do sistema. Nesse sentido, quando a oposição mobiliza o discurso da corrupção, isso não necessariamente renderá votos, porque o eleitor muitas vezes tem uma posição indiferente à coloração partidária. O eleitor avalia o desempenho individual do político quanto aos seus interesses. A corrupção pertence a uma ordem de organização do sistema, que precisa ser reformado de forma a minimizar esse problema.

CC: O quanto a percepção de que o Estado brasileiro e naturalmente corrupto leva à despolitização do eleitorado? Quais os riscos para a democracia?

FF: O processo leva a uma indiferença do eleitorado, por um lado. A desconfiança em relação às instituições representativas é enorme, especialmente o Congresso Nacional e os partidos políticos. As instituições eletivas passam por uma síndrome de desconfiança que as corrói. Por outro lado, a corrupção leva ao fortalecimento das instituições de caráter não eletivo, como, por exemplo, aquelas de auditorias, o Judiciário e o Ministério Público. Em diversas pesquisas feitas por nós, a Polícia Federal aparece no Brasil como a instituição mais confiável e menos corrompida para os cidadãos. Por quê? Porque ela tem atuado em grandes operações contra o crime organizado e contra a corrupção. Essas operações normalmente são cercadas de forte apelo midiático. Quando se poderia imaginar um político ou grande empresário ser algemado no Brasil? O processo modificou a imagem das instituições e tem a corrupção como um dos seus principais ingredientes. O fortalecimento de instituições contra majoritárias tem modificado as democracias. Este é um processo que ocorre também nas democracias consolidadas e tem levado a mudanças na legitimidade do poder. A despolitização ocorre à medida que o próprio discurso reforça a ideia de que todo político é corrupto, que as instituições eletivas têm de ser mantidas sob controle, que o Estado é ineficiente, que o poder corrompe. Esse processo tem impactado fortemente as democracias e modificado o sistema de legitimidade.

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Avritzer: “Se existe um fenômeno no qual o Estado e o mercado são sócios no Brasil é o da corrupção”

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CC: A que atribuem essa visão geral do brasileiro de que a corrupção é eminentemente um problema do Estado e do universo político, sem grandes ligações com a esfera privada ou com as práticas individuais de cada cidadão?

LA: Há uma tendência no Brasil a se ter uma concepção instrumental do Estado, as virtudes da sociedade seriam do mercado ou da esfera privada, ao passo que os problemas seriam estatais. Nos últimos 20 anos, com a emergência do neoliberalismo e os processos de privatização, essa tendência se acentuou. Se existe um fenômeno no qual Estado e mercado são sócios no Brasil é o da corrupção. E podemos citar diversos episódios recentes para corroborar: escândalos como o do ex-governador do Distrito Federal ou a relação pouco explicada entre o governador do Rio de Janeiro e uma grande empreiteira. De qualquer maneira, as punições ou demissões ocorrem no campo do Estado e as relações pouco claras entre público e privado acabam sendo reconstruídas com outros políticos. Uma mudança qualitativa na corrupção tem de implicar punições de grandes grupos econômicos com fortes relações com o Estado nos casos nos quais a corrupção é identificada.

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Filgueiras: “O eleitor percebe a corrupção em uma sistmica, em que ela não depende apenas da condição moral do político”

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CC: Como os senhores avaliam a aprovação da Lei da Ficha Limpa? Acreditam que ela tem algum poder de melhorar a seleção dos representantes políticos? LA: O mais importante da Lei da Ficha Limpa é que ela cria uma nova configuração no combate à corrupção ao introduzir a sociedade civil no debate. A maneira como a lei surgiu, por meio de um movimento de combate à corrupção propondo uma lei de iniciativa popular, foi essencial para que ela não ficasse esquecida em alguma comissão obscura do Congresso Nacional. Esse pode vir a ser também um caminho possível para a tão esperada reforma política. Acho que a Ficha Limpa vai ser capaz de produzir um efeito importante sobre o funcionamento do sistema político na medida em que as pessoas não vão querer ficar de fora do jogo.

FF: A aprovação da lei é positiva. Porém, a sua aplicação vai depender não apenas da sua constitucionalidade anunciada pelo Supremo Tribunal Federal, mas também da sua interpretação e consolidação de jurisprudência por parte do Tribunal Superior Eleitoral. A lei é cercada de uma série de controvérsias jurídicas. Mas, no momento da sua aplicação, dependerá de uma série de nuances que surgirão com os casos concretos. Creio que devemos aguardar o próximo pleito eleitoral, em que ela será aplicada, para avaliar melhor o seu impacto na arena política. CC: Como os senhores classificariam o grau de transparência do Estado brasileiro em relação a outras nações?

FF: O Brasil é um dos países mais transparentes do mundo. Basta imaginar que o Portal da Transparência, do governo federal, permite o acesso do cidadão comum à aplicação direta dos recursos públicos. A lei de acesso à informação permite que qualquer cidadão requeira informações em tempo adequado. Isso são avanços inegáveis. O gargalo, no Brasil, talvez esteja hoje nos municípios. Mas a própria lei de acesso à informação prevê que os municípios criem os seus portais de transparência. Mas a transparência por si mesma não resulta em eficiência do controle da corrupção, se ela não for punida dentro de todos os princípios da legalidade e da publicidade. Reforçar a publicidade, a nosso ver, é o caminho mais adequado para estabelecer controle sobre a corrupção. Isso significa dar um passo além da transparência, pensando, sobretudo, na criação de uma identidade pública fortalecida, que seja capaz de mudar as práticas com relação ao bem público, tanto na dimensão do sistema político e da gestão pública quanto na dimensão da cidadania.

CC: E o financiamento público de campanhas? E le teria por si só um efeito moralizador como pregam seus defensores?

LA: 0 financiamento público de campanhas é a grande mudança que pode e deve ser feita no sistema político brasileiro. Há uma justificativa político-moral: as desigualdades que são produzidas pela economia de mercado não devem predominar na escolha das decisões políticas. Um sistema de financiamento público poderia melhorar a composição do Congresso Nacional e permitir separar o joio do trigo na política brasileira. Existem políticos bons e honestos em quase todos os partidos e eles devem ter a possibilidade de financiar suas campanhas de uma forma clara e transparente. Só o financiamento público é capaz de viabilizar esses políticos e criar uma base política não corrupta a partir da qual a legitimidade do Poder Legislativo no Brasil poderá ser reconstruída.

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