ONG e dinheiro público – José Anacleto Abduch Santos

Sábado na Gazeta do Povo

A regulamentação dos convênios e repasses de dinheiro público para as ONGs é bastante adequada e suficiente, vale dizer desvios de recursos, fraudes e apropriação indébita não podem ser atribuídos à falta de normas

A Constituição e a lei estabelecem a possibilidade de que recursos públicos federais – o que se reproduz no âmbito de estados e de municípios – sejam transferidos para entidades privadas. Uma das formas dessa transferência são as denominadas transferências voluntárias – portanto não obrigatórias – pela via dos convênios.

Esses repasses voluntários são regidos especificamente no âmbito federal pela Lei n.º 8.666/93, pelo Decreto n.º 6.170/08 e pela Portaria Interministerial n.º 127/08. A regulamentação dos convênios e repasses de dinheiro público para as ONGs é bastante adequada e suficiente, vale dizer; desvios de recursos, fraudes e apropriação indébita não podem ser atribuídos à falta de normas.

Tome-se, pois, aquilo que as normas já determinam para o administrador público. No âmbito do planejamento da transferência voluntária – sim, é necessário um planejamento consistente da configuração do convênio, uma fase interna similar à demandada no processo da contratação pública – há expressa imposição de instauração de um processo de chamamento público, uma espécie de licitação com necessária previsão de requisitos de qualificação técnica e econômico-financeira da entidade privada candidata a receber os recursos, inclusive mediante prova de experiência anterior na execução do objeto do convênio. Já existem vedações à celebração de convênios, para vedar também a prática do nepotismo.

No que diz respeito à execução do objeto do convênio, deve haver a designação de um servidor ou comissão de servidores para acompanhar a compatibilidade entre o que foi estabelecido no pacto e o que foi efetivamente realizado, bem como a adequação das liberações de recursos com o cronograma físico-financeiro fixado. Somente é permitida a liberação das verbas destinadas a fases posteriores, se tiver havido a prestação e aprovação das contas das verbas liberadas em relação às parcelas antecedentes.

As contratações feitas pelas entidades privadas com os recursos públicos devem ser antecedidas de, no mínimo, cotação prévia de preços, uma espécie de licitação simplificada destinada a assegurar a isonomia e a busca pela proposta mais vantajosa. Os pagamentos feitos pela entidade privada devem ocorrer mediante depósito em conta corrente do beneficiário, o que possibilita o controle pleno. Ao final, deve haver a prestação de contas, pela qual a ONG demonstrará que utilizou os recursos públicos apenas para os fins previstos no plano de trabalho e devolverá o saldo, se houver.

Caso a entidade privada cometa algum ato ilegal, ilegítimo ou antiêconomico na utilização dos recursos, como utilizar o dinheiro para fins diversos daqueles convencionados, a administração concedente deve rescindir imediatamente o convênio e determinar a apuração do dano ao erário, a identificação do responsável e promover a ação necessária à reparação do prejuízo.

Para o fim de apurar responsabilidades, obter a reparação do dano e punir os infratores há meios jurídicos mais do que suficientes, como por exemplo, as tomadas de contas especiais no âmbito dos Tribunais de Contas, para não se cogitar de ações de improbidade administrativa, ações criminais e de reparação de danos. Poder-se-ia indagar então: se os meios jurídicos são adequados, por que ocorrem tantas fraudes nos processos de transferência voluntária de recursos públicos? Tal questão, por primeiro, pode estar partindo de uma premissa equivocada. As fraudes, proporcionalmente ao volume de recursos e ao número de entidades que recebem dinheiro público pela via do convênio, talvez não sejam tantas como se pode inicialmente supor. O que não justifica a existência de nenhuma, por óbvio.

Mas se podem apontar três fatores decisivos para a ocorrência das fraudes: 1º, falha de planejamento, admitindo-se a transferência de dinheiro para entidade que não detém capacidade técnica e econômico-financeira; 2º, falha na fiscalização da execução do objeto do convênio e falhas na cobrança e análise das prestações de contas parciais; 3º, negligência na apuração das responsabilidades, o que conduz à impunidade. Com a ressalva de que a Constituição estabelece que a omissão na apuração de responsabilidade pelo uso indevido de dinheiro público gera responsabilidade solidária daquele que devia fazê-lo e não o fez, ou o fez de forma insuficiente.

José Anacleto Abduch Santos, advogado, é procurador do estado e professor do UniCuritiba.

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Steve Jobs, empregos e carros – Paul Krugman

Visão de mundo atual dos republicanos não aceita que empresas bem-sucedidas não existem isoladamente

Mitch Daniels, antigo diretor de Orçamento da Casa Branca na era George W. Bush e agora governador de Indiana, apresentou a resposta republicana ao discurso do presidente Barack Obama sobre o Estado da União. Seu desempenho foi, bem, tedioso. Mas disse uma coisa que me levou a refletir -e não da maneira que ele gostaria.

Ele tentou recobrir seu partido com o manto de Steve Jobs, a quem retratou como um grande criador de empregos -algo que Jobs claramente nunca foi. E, ao perguntarmos por que a Apple criou tão poucos empregos nos EUA, descobrimos alguma coisa sobre o que há de errado com a ideologia que domina boa parte da política americana atual.

Daniels primeiro criticou o presidente por “sua constante depreciação de homens e mulheres de negócios”, o que na verdade representa uma completa mentira. Obama jamais agiu assim. E prosseguiu: “O grande Steve Jobs -e como seu nome era adequado [jobs é empregos em inglês]- criou mais postos de trabalho do que todas aquelas verbas de estímulo que o presidente tomou emprestadas e desperdiçou”.

Daniels claramente não tem grande futuro no ramo do humor. Mas o que importa é que que sua afirmação é completamente falsa: a Apple emprega pouca gente nos EUA.

São apenas 43 mil pessoas nos EUA. No entanto, cria empregos indiretos para cerca de 700 mil pessoas em seus diversos fornecedores. Infelizmente, quase nenhum deles está estabelecido nos EUA.

Por que a Apple fabrica no exterior, especialmente na China? O atrativo não são só os baixos salários. A China também oferece grande vantagem porque já abriga boa parte da cadeia de suprimentos.

As empresas de sucesso -ou ao menos as que dão grande contribuição para a economia de um país- não existem isoladamente. A prosperidade depende da aglomeração, e não do empresário individual.

Mas a visão de mundo atual dos republicanos não aceita esse tipo de consideração. Da perspectiva do partido, tudo depende do empresário heroico, do “criador de empregos”, que nos cumula de benefícios e, portanto, precisa ser premiado com alíquotas tributárias inferiores às pagas pela classe média.

E essa visão ajuda a explicar a furiosa oposição de muitos republicanos à iniciativa política de maior sucesso dos últimos anos -o resgate à indústria automobilística.

Se a quebra da GM e da Chrysler fosse permitida, elas teriam arrastado consigo boa parte da cadeia de suprimentos, o que derrubaria também a Ford. Felizmente, o governo Obama não permitiu isso.

Por isso, deveríamos agradecer a Daniels pelas suas declarações. Ele estava errado quanto aos fatos, mas sem querer colocou em destaque uma importante diferença filosófica entre os partidos. Um lado acredita que a economia só encontra sucesso graças a heroicos empreendedores; o outro nada tem contra os empreendedores, mas acredita que necessitem de um ambiente de sustentação e que o governo ocasionalmente precisa ajudar a criar ou manter esse ambiente.

E a interpretação de que o país precisa de mais que heróis dos negócios se enquadra perfeitamente aos fatos.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

O conluio entre os poderes econômico e político – Plínio de Arruda Sampaio

Sábado na Folha de S. Paulo

Até quando os noticiários dos jornais e da televisão mostrarão as cenas degradantes dos despejos de famílias sem-teto?

A mais recente delas, realizada em uma área de São José dos Santos, expulsou famílias que ocupavam, há oito anos, uma área periférica da cidade.

Oito mil policiais foram desviados das suas funções de manutenção da segurança da população para essa inglória tarefa.

Agindo com violência, esses policiais feriram as pessoas, destruíram as casas e os objetos dessa pobre gente, atingindo até as crianças. Foi uma barbaridade.

O promotor público, obrigado por lei a presenciar essas operações, brilhou pela ausência.

Chama a atenção igualmente a ausência de parlamentares, especialmente daqueles pertencentes aos partidos de esquerda.

Com a exceção honrosa do senador Eduardo Suplicy, é muito raro ver parlamentares presentes nesses eventos com a finalidade de prevenir excessos da força policial.

O mais incrível é que o mesmo Estado que realizou o despejo estava negociando com o proprietário do terreno a aquisição da área, para vender aos ocupantes.

Os advogados dessas famílias fizeram um grande esforço para demonstrar à juíza do processo que a solução do problema era uma questão de dias.

Indiferente ao drama humano que sua decisão causaria, a juíza aplicou mecanicamente a lei e determinou o despejo.

Não contente, um juiz de direito acompanhou o despejo e indeferiu de plano, em pleno local, todas as petições que foram apresentadas pelos advogados com o proposito de evitar a execução do mandado.

Só se justificaria a presença de um magistrado em eventos desse tipo se fosse para prevenir excessos da força policial.

No entanto, a presença de um juiz de direito no Pinheirinho não causou nenhuma inibição nos soldados, em uma evidente demonstração do conluio entre o poder econômico e o poder político nos Estados hegemonizados pela burguesia.

Nesses Estados, a prioridade primeiríssima é sempre a defesa do sacrossanto direito de propriedade. Todo o resto -os direitos humanos, a integridade física, os pequenos pertences das pessoas- fica subordinado ao direito maior.

Por isso, o direito à propriedade de um milionário relapso, que deve milhões de tributos não pagos ao Estado brasileiro, justifica o espancamento de pessoas e a destruição de seus bens.

E agora? Como ficam as famílias despejadas? Quem cuidará delas?

Elas obviamente irão ocupar outra área. Serão novamente expulsas e voltarão a sofrer os mesmos vexames e as mesmas violências.

Isso acontece e continuará acontecendo enquanto não houver uma legislação que coíba a especulação imobiliária, porque é ela que causa o aumento extorsivo do preço dos terrenos e, desse modo, exclui as famílias pobres do mercado.

Pacífica, despolitizada e sem organização, essa população tem aceitado a situação intolerável sem recorrer à violência. Até quando?

Isso vai continuar acontecendo enquanto os partidos de esquerda deixarem de cumprir seu papel de conscientizar e organizar essa massa, para que ela resista a esses ataques de armas na mão.

Na hora em que isto for uma realidade, não haverá violência, porque a consciência dessa realidade será suficiente para manter os cassetetes na cintura.

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 81, advogado, foi deputado federal pelo PT-SP (1985-1991), consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e candidato a presidente pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade)