Foucault neoliberal?

Michel Foucault, ao fundo Nietzsche

Publicado na Folha de S. Paulo, Ilustríssima, 22.05.2011

Foucault, o intempestivo

As “trips” teóricas e lisérgicas no apartamento do filósofo, segundo seus amigos


RESUMO
No Brasil e na França, novas edições celebram vida e obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984): romance de Mathieu Lindon e ensaio de Paul Veyne fazem um retrato afetivo do amigo; ensaios refletem sobre seu pensamento independente e avesso a ideologias, que ainda mobiliza paixões em discípulos e detratores.

ALCINO LEITE NETO

O APARTAMENTO no qual Michel Foucault viveu seus últimos anos em Paris ficava no oitavo andar de um prédio da rue de Vaugirard. Na vasta e luminosa sala, o filósofo e seus amigos elegeram um lugar para tomarem LSD: o cantinho Mahler, próximo da vitrola e com sofás confortáveis. As viagens de ácido costumavam ser embaladas pela música do compositor, um dos preferidos do anfitrião, e pela projeção de filmes, de preferência, comédias dos irmãos Marx.
“LSD, cocaína, ópio, ele provou de tudo, menos, claro, heroína: mas não acabará cedendo, em sua vertigem atual?”, escreveu, em 1975, o jornalista Claude Mauriac, amigo de Foucault, em seu titânico diário (“Le Temps Immobile”, Grasset, em dez vols.). Na varanda de sua casa, o filósofo cultivava pés de maconha, conforme relata Didier Eribon na biografia “Michel Foucault”. De lá, avista-se o apartamento do escritor Hervé Guibert, no prédio ao lado.
Guibert era 29 anos mais novo que Foucault, mas estabeleceu com ele, a partir de 1977, uma forte amizade, que seguiu até a morte do filósofo, provocada pela Aids, em 1984, aos 57. A mesma doença atingiu o escritor, que morreu pouco tempo depois, em 1991, aos 36.
Um ano antes de seu falecimento, Guibert publicou o romance autobiográfico “O Amigo Que Não Me Salvou a Vida”, que tem como protagonista o professor homossexual Muzil, adepto de práticas sadomasoquistas -claramente inspirado em Foucault. Conta-se que, após a morte do filósofo, foram encontrados em sua casa vários instrumentos para as práticas SM.

FIGURA LITERÁRIA 
Agora, Foucault faz novo retorno como figura literária no livro “Ce Qu’Aimer Veut Dire” (O Que Amar Quer Dizer), de Mathieu Lindon, lançado há pouco na França [ed. POL, 311 págs., 18,50 euros]. Ele é o personagem central desta obra autobiográfica, narrada com delicadeza e generosidade.
Mathieu Lindon é filho do lendário editor Jerôme Lindon (1925-2001), da Minuit, casa fundada em 1941 e responsável pela publicação de gigantes da literatura de vanguarda, como Samuel Beckett e Alain Robbe-Grillet, além de Georges Bataille, Gilles Deleuze e outros nomes cruciais da filosofia no século 20. Como Hervé Guibert, Mathieu nasceu em 1955.
Ele tinha 23 anos, trabalhava como jornalista e ainda não publicara nenhum livro quando se aproximou, em 1978, de Foucault, então o mais celebrado e polêmico pensador francês. Foi levado ao apartamento da rue de Vaugirard por amigos da mesma idade, que formavam em torno do autor de “Arqueologia do Saber”, já cinquentão, um círculo de relações juvenis. O convívio era dedicado mais às conversas amenas sobre arte, aos passeios, aos jantares e às drogas do que aos densos debates filosóficos.
TRIO Foi Foucault quem insistiu na aproximação de Mathieu e Guibert. Juntos, acabaram formando um trio fidelíssimo de amigos. Quando viajava de férias ou para seus cursos no exterior, o filósofo entregava as chaves do apartamento para os jovens amigos, que faziam do local o seu ponto de encontro, de festas e de sexo. Para Mathieu, viver no apartamento era como “habitar a própria juventude”. E, para Foucault, os jovens e o LSD significavam a oportunidade de poder “pensar diferente”, nas palavras do escritor.
As situações vividas no apartamento ocupam boa parte da narrativa -uma festinha com um dançarino japonês nu, um jantar para William Burroughs, os encontros amorosos e, sobretudo, as viagens de ácido.
Numa das mais belas passagens do livro, ao tratar da morte do filósofo, Mathieu diz: “Eu fui o garoto do apartamento, aquele que, como num ‘vaudeville’, chega quando o outro parte, e parte quando o outro chega. Mas quando o outro partiu para sempre, que o ‘vaudeville’ deu errado, não havia mais como voltar. Nossos destinos estavam ligados. E quando eles se desligaram, eles permaneciam ligados. Eu persistia em querer ocupar ao menos um espaço imaginário, uma rue de Vaugirard que se tornara então um mundo tão desaparecido quanto Atlântida”.
O livro se desenvolve como um discreto romance de formação e é também um balanço da relação de Mathieu com a forte figura de seu pai, cuja notoriedade e influência pesava sobre sua vida. “Meu pai era um fato, Michel havia sido um acaso”. Em Foucault, ele encontra não um pai substituto, mas um amigo e um interlocutor que o conduzirá da adolescência à maturidade, das indecisões juvenis à carreira de escritor.
“Ele me educou”, escreve. E completa: “É o amigo que me salvou a vida”. Mathieu traça do filósofo um retrato amoroso, luminoso e alegre -nos antípodas do dilacerado protagonista do romance de Guibert, em “O Amigo Que Não Me Salvou a Vida”.

HOMENAGENS 
O lançamento de “Ce Qu’Aimer Veut Dire” coincide com as homenagens que estão sendo prestadas a Foucault, com uma série de livros sobre ele chegando às livrarias da França e do Brasil.
Seus raros escritos e entrevistas a respeito de filmes foram reunidos no livro “Foucault Va Au Cinéma” (Foucault Vai ao Cinema) [org. Patrice Maniglier e Dork Zabunyan, ed. Bayard, 168 págs., € 21]. O filósofo não tinha o cinema em alta conta -preferia a pintura e a música. Dizia se entediar com Bergman e se irritar com Godard, que por sua vez classificou Foucault como um dos “novos intelectuais inúteis”.
Convocado, porém, pelos “Cahiers du Cinéma” e outras publicações entre meados dos anos 1970 e o início dos 1980, fez significativas intervenções no debate cinematográfico, analisando a representação da história e das classes populares nos filmes. Em 1976, um de seus livros ganhou adaptação para as telas, pelas mãos do diretor francês René Allio: “Eu, Pierre Rivière, Que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão”.
Na França, foram lançados ainda uma edição revista da biografia “Michel Foucault”, de Didier Eribon [Champs Flammarion, 646 págs., € 11], que teve edição brasileira pela Companhia das Letras, em 1990, e novo volume dos cursos no Collège de France. O filósofo também foi destacado no “Cahier Foucault” [416 págs., € 39], das prestigiosas Editions de l’Herne, com mais de 50 ensaios de pesquisadores, entre eles Judith Revel, Arlette Farge, Antonio Negri, Georges Didi-Huberman, Daniel Arasse e Bernd Stiegler. A edição traz inéditos e facsímiles de textos datilografados ou manuscritos, como as anotações para a conferência “O Negro e a Superfície”, sobre a pintura de Manet.

CONTRADIÇÕES 
É natural que, em comemorações assim, predomine um tom encomiástico e de consagração. Mas sempre aparece alguém para atrapalhar a festa. E, na França, foi o caso de José Luis Moreno Pestaña, com “Foucault, la Gauche et la Politique” (Foucault, a Esquerda e a Política) [Textuel, 144 págs., € 9,90]. Publicado em fevereiro, o pequeno livro pretende expor as contradições das posições políticas de Foucault. Curiosamente, neste caso, a investida não vem da ala conservadora, que costuma ter no filósofo um alvo de estimação. Professor da Universidade de Cádiz (Espanha) e autor de outros livros sobre o pensador francês, Pestaña é um discípulo de Pierre Bourdieu e um intelectual próximo da esquerda. No livro ele reclama, justamente, da “inconstância” política de Foucault e da impossibilidade de definir, a partir do seu trabalho, uma política de esquerda.
O autor resume assim a trajetória do filósofo: comunista na juventude, flerta com o gaullismo no início de sua carreira acadêmica, adere à extrema esquerda no pós-Maio de 68 e, por fim, sucumbe à visão antitotalitária dos novos filósofos (como André Glucksmann, do qual era amigo). Pestaña chega a dizer, com exagero, que Foucault se deixou seduzir no final da vida por um “neoliberalismo culturalmente radical”.
A descrição há de espantar os críticos de Foucault situados à direita e que costumam ver nele um esquerdista radical. Mas não constitui novidade o filósofo ser objeto de ataques da esquerda e dos marxistas.

MARX 
Didier Eribon recorda, na biografia “Michel Foucault”, que à época do seu lançamento, em 1966, “As Palavras e as Coisas” foi com frequência considerado “de direita”. O próprio Jean-Paul Sartre enxergou na obra uma afronta radical a Marx: “O marxismo é o alvo [do livro de Foucault]. Trata-se de constituir uma ideologia nova, a última barreira que a burguesia ainda possa levantar contra Marx”, escreveu o autor de “O Ser e o Nada”.
“As Palavras e as Coisas”, livro que revolucionou as ciências humanas com sua proclamação da “morte do homem”, será peça central na virulenta polêmica então travada entre marxistas e estruturalistas. “O livro de Foucault é excomungado nos círculos do Partido”, escreve Eribon. “Não lhe perdoam ter afirmado que ‘no pensamento do século 19 o marxismo é como um peixe na água, quer dizer, em qualquer outro lugar ele para de respirar’.”
Na mesma época, meados dos anos 1960, o filósofo entretém agradáveis relações com o governo De Gaulle. Em 1965, chega a participar de um projeto de reforma universitária proposto pelo premiê gaullista Georges Pompidou. Não há consenso sobre sua simpatia ao gaullismo, mas é certo que Foucault -que pertencera na juventude ao PCF, como boa parte de sua geração- se tornaria, depois de uma experiência desagradável em Varsóvia, onde fora dar aulas, “violentamente anticomunista”, nas palavras de Eribon.
O biógrafo também recorda como foi recebida com percalços a nomeação de Foucault para ocupar a coordenação do curso de filosofia da recém-criada Universidade de Vincennes, que se tornaria uma linha de frente da esquerda universitária no pós-Maio de 68. “Consideram-no [a Foucault] pouco engajado, pecado supremo aos olhos dos ativistas de todas as facções que afluem para erguer [em Vincennes] o que se tornará o ‘bastião vermelho’ de após 1968. Dizem que ele é ‘gaullista’, criticam- no muito por não ter ‘feito nada’ em Maio de 1968”.
IRÃ A complexidade -para não dizer a independência- das suas posições políticas se acentua nos anos 1970, quando ele se aproxima da extrema esquerda, milita em diversas causas, ajuda a fundar o jornal “Libération”, então radicalmente progressista, e engrossa com alarde o coro dos que defendem a revolução islâmica do Irã, em 1979, contra a monarquia do xá Reza Pahlevi.
Foi seu engajamento mais controverso e que lhe causou sério desgosto, em decorrência da subsequente ditadura religiosa que emergiu no país, sob as barbas do aiatólá Khomeini. O episódio é tema do recém-lançado “Foucault e a Revolução Iraniana”, de Janet Afary e Kevin B. Anderson [É Realizações, trad. Fabio Monteiro de Barros Faria, 480 págs. R$ 89], ataque audacioso às posições do filósofo no episódio. Embora traga abundantes e relevantes explicações sobre a situação religiosa e política iranianas no período, o livro simplifica brutalmente o pensamento foucaltiano. Seu principal mérito é reunir as reportagens feitas pelo filósofo no Irã, à época, por encomenda do jornal italiano “Corriere della Sera”.
Foucault foi seduzido pelos protestos populares contra a tirania de Reza Pahlevi e pela confluência de política e religiosidade em um movimento que se imaginava de libertação. Chegou a se reunir com Khomeini na França, onde o líder se encontrava exilado. Porém, segundo o historiador Paul Veyne, o filósofo não ficou com uma impressão muito favorável do aiatolá, sobre o qual teria dito: “Ele me falou de seu programa de governo; se tomasse o poder, seria de uma idiotice de fazer chorar”.
Não foi menos conturbada a relação de Foucault com os socialistas, quando estes chegaram ao poder na França em maio de 1981, com a vitória de François Mitterrand. Veyne conta que o filósofo teria ficado, na verdade, “colérico” com a chegada dos socialistas ao poder. “Suponho, sem estar certo, que ele preferia [Michel] Rocard [socialista moderado] a Mitterrand. Na ocasião de sua morte [em 1984], Foucault estava preparando uma crítica do socialismo francês (havia uma pilha de livros sobre a questão em sua cabeceira); o partido socialista, segundo ele, nunca tinha tido política propriamente dita.”
AMIGO As revelações de Veyne fazem parte de um livro extraordinário, “Foucault – Seu Pensamento, Sua Pessoa”, publicado pelo historiador em 2008 e que ganha agora edição no Brasil [trad. Marcelo Jacques de Morais, Civilização Brasileira, 256 págs., R$ 39,90]. Como ocorre com Mathieu Lindon, a obra de Veyne é o testemunho de um amigo.
Especialista na Antiguidade greco-romana, o historiador foi aluno de Foucault na juventude e manteve com ele uma amizade e uma colaboração de 30 anos. Era também um frequentador do apartamento da rue de Vaugirard, mas para os debates filosóficos e políticos que ali eram travados. Heterossexual, Veyne conta que foi eleito por Foucault como o “homossexual honorário” da turma.
O livro, entretanto, é feito menos de revelações pessoais do que de um trabalho de apresentação, esclarecimento e defesa das ideias do filósofo contra seus inúmeros detratores, de esquerda e direita – entre eles o brasileiro José Guilherme Merquior, autor de “Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra”, a mais severa, complexa e respeitada confrontação com as ideias foulcaltianas, livro fora de catálogo no país, mas que pode ser adquirido na edição em inglês “Foucault” [Fontana Press, US$ 13].
Em contraponto aos que acusam Foucault de niilista, Veyne o define como um pensador cético, que desconfia dos conceitos universais, mas não das singularidades empíricas nem da realidade dos fatos. “As singularidades empíricas lhe pareciam a bom direito dignas de fé. Elas são a oportunidade do historiador, do jornalista ou do investigador: seu questionamento incide precisamente sobre o desenrolar singular de um acontecimento”, escreve o historiador.
Foucault tampouco seria um relativista, como alguns costumam tachá-lo, mas sim um “perspectivista”, na linhagem nietzschiana, empenhado em libertar o pensamento de sua sujeição a estas quatro ilusões: “a adequação, o universal, o racional e o transcendental”. Segundo Veyne, “Foucault sugeriu imprudentemente que em nossa época a humanidade estava começando a aprender que podia viver sem mitos, sem religião e sem filosofia, sem verdades gerais sobre si mesma. Era essa a revolução nietzschiana, da qual ele estimava ser um continuador.”

DECISIONISMO INDIVIDUAL 
O historiador descreve Foucault como um sujeito avesso às ideologias, inclusive à marxista, adepto de um “decisionismo individual”, que lhe “dispensava de fundamentar suas ações militantes na verdade, na doutrina”. Ele diz: “O foucaltianismo é uma crítica da atualidade que se esquiva de ditar prescrições para a ação, mas fornece-lhe conhecimentos.” Misto de esgrimista e samurai, na definição do historiador, o filósofo também teria sido um “astuto”, que preferiu ficar próximo dos militantes de esquerda sobretudo porque entre eles “podia encontrar companheiros para suas lutas pontuais”.
Diz Veyne: “Esse pretenso esquerdista, que não era nem freudiano, nem marxista, nem socialista, nem progressista, nem terceiro-mundista, nem heideggeriano, que não lia nem Bourdieu, nem ‘Le Figaro’, que não era nem ‘nietzschiano de esquerda’, nem, aliás, de direita, foi o inatual, o intempestivo de sua época, para retomar com justiça um termo nietzschiano”. Declaração polêmica, que deve incomodar -como outras de Veyne- foulcaultianos e antifoulcaultianos radicais, mas que ajuda a explicar por que é tão difícil obter a paz do consenso em relação a este filósofo que buscou construir seu pensamento além do bem e do mal.

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Sócrates no calçadão
As viagens de Foucault ao Brasil


RESUMO
Nos anos 1960 e 70, Michel Foucault veio diversas vezes ao Brasil, tendo exercido forte influência em jovens filósofos e psicanalistas, não sem questionar em debates as convicções ideológicas locais. Embora tenha feito laços afetivos e tenha se divertido na Lapa carioca, não manteve uma relação duradoura com o país.

RAFAEL CARIELLO

“FOUCAULT CORROMPE a juventude?”, pergunta o título de um dos capítulos do livro de Paul Veyne sobre Michel Foucault, ecoando, não sem ironia, a acusação feita pela cidade-Estado de Atenas ao pensador grego Sócrates, quatro séculos antes de Cristo. No auge de sua produção intelectual, Michel Foucault esteve por cinco vezes no Brasil. Entre 1965 e 1976, “corrompeu a juventude” do país com suas ideias, em cursos e palestras nas universidades brasileiras.
Sobretudo nas visitas a partir de 1973, quando já era uma estrela da vida intelectual francesa, o impacto de sua presença no Brasil ultrapassou a simples exposição de ideias em sala de aula. Ele próprio se disse impressionado, mais tarde, pelos estudantes brasileiros, “famintos por aprender”. As discussões prosseguiam nas festas, nos almoços, na praia.
Ao filósofo Roberto Machado, que se tornou seu amigo nas visitas ao Rio e o acompanhou em sua viagem ao Nordeste do país, Foucault dizia nunca ter trabalhado tanto, falado tanto, nunca ter sido tão requisitado.
Ao mesmo tempo, tanto quanto Sócrates nos diálogos de Platão, era por vezes implacável com seus interlocutores brasileiros, derrubando impiedosamente certezas pré-estabelecidas. Isso não impediu que, assim como o protagonista do “Banquete”, despertasse paixões, motivadas tanto por suas ideias quanto por sua personalidade.

DESCONFORTO 
O ceticismo de Foucault provocou desconforto num país em que se discutia “Freud e Marx ao infinito”, como constatou o próprio filósofo, em carta ao companheiro Daniel Defert. Durante suas palestras na PUC-Rio, em 1973, o pensador francês chegou a ouvir acusações, proferidas da plateia, de “ingenuidade” e “idealismo”. Estudantes, pesquisadores e professores lotavam um dos auditórios do campus da Gávea.
Roberto Machado, hoje professor aposentado de filosofia da UFRJ, lecionava à época na universidade católica. “O auditório ficava cheiíssimo. Não me lembro bem, mas parece que era pago. Houve até uma manifestação de estudantes para poderem entrar de graça. Mesmo assim, as palestras ficavam abarrotadas de gente.”
Na mesma semana, Foucault participou de uma mesa redonda com professores da PUC e alguns convidados, entre eles o psicanalista Hélio Peregrino (1924-88), com quem debateu sobre o complexo de Édipo. Para Pellegrino, a relação da criança com os pais é determinante para toda experiência de desejo posterior daquele indivíduo. O palestrante principal argumentava que não há um fundamento único do desejo, que a mãe é um “objeto primeiro” para a criança apenas no sentido cronológico, mas nem por isso “primordial, essencial, fundamental”.
O psicanalista brasileiro citou então a pesquisa de um colega. “Ele mostra o fenômeno ‘hospitalício'”, disse Pellegrino, em referência a bebês criados em hospitais, desde o nascimento. “As crianças que não têm maternização simplesmente perecem, morrem por falta de mãe”.
“Compreendo”, respondeu Foucault. “Mas isso só prova uma coisa: não que a mãe seja indispensável, mas que o hospital não é bom.”

DITADURA 
Há poucos registros de críticas públicas do autor de “Vigiar e Punir” à ditadura militar brasileira, que vigorou por todo o período em que Foucault fez visitas ao Brasil. “Ele nunca foi um provocador inconsequente”, argumenta o psicanalista Jurandir Freire Costa, que acompanhou o filósofo no Rio de Janeiro na década de 70. “Sabia que estava sob uma ditadura, cercado de pessoas que eram vulneráveis. Havia um acordo tácito de que só falaríamos do que era possível.”
Mas, em outubro de 1975, enquanto dava um curso na USP, uma onda de prisões foi deflagrada pelos agentes do regime militar na cidade. A Folha do dia 24 daquele mês relata um protesto de estudantes da universidade “contra a prisão, ocorrida nas últimas semanas, de estudantes, professores e jornalistas”. A reportagem registra que o “professor Michel Foucault, psicólogo francês” compareceu à assembleia e fez “um pronunciamento de solidariedade aos estudantes”. Anunciou, em seguida, que suspenderia seu curso antes do fim.
Dois dias depois, o país tomava conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso e torturado por agentes da repressão.
Foucault também fez, ainda em São Paulo, declarações de repúdio à ditadura brasileira para a imprensa internacional, lembra Heliana Conde, professora do departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), que realiza pesquisa sobre as visitas do filósofo ao Brasil.

PROVOCAR
Roberto Machado afirma que o objetivo das declarações era provocar os militares, tentar ser expulso do país e assim chamar a atenção da opinião pública internacional para o que se passava no Brasil. Como não conseguiu, acreditou que poderia ser barrado ao tentar entrar novamente em território brasileiro, no ano seguinte, mas sua visita, organizada pela Aliança Francesa, foi autorizada. Em 1976, proferiu palestras em Salvador, Recife e Belém. Acreditava estar sendo seguido pelos militares enquanto viajava pelo país.
Em Belém, deu um curso a estudantes e pesquisadores da Universidade Federal do Pará, a pedido do filósofo Benedito Nunes (1929-2011). “Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos frequentadores” das aulas, relatou Nunes em 2008 à revista “Transformação”, da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
“Eu disse: ‘Não dou a relação’. Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor, que foi muito correto, e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto. Não era uma invenção dizer que o SNI estava infiltrado”.

À VONTADE
Uma relação de “afinidade eletiva” ligava Foucault ao Brasil, segundo estudantes e professores que o acompanharam em suas visitas, como os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freire Costa. Avesso à formalidade francesa, o filósofo se sentia à vontade no Rio de Janeiro, conta Machado.
O professor brasileiro se lembra de uma carona que ofereceu, logo na primeira visita, em 1973, ao colega francês. O destino era a Lapa, bairro “para onde a garotada da zona sul ainda não ia”, no início dos anos 70, conta Machado. Recém-chegado à cidade, após os anos de doutorado na Bélgica, o professor brasileiro parou seu Fusca ao lado de um táxi, ao sair de Copacabana, e pediu informações sobre o caminho. Foucault brincou: “Você mora no Rio de Janeiro e não conhece o bairro mais interessante da cidade?”.
As visitas ao centro da cidade se repetiram em todas as suas estadas no Rio. Ia sempre se encontrar com um certo Hamilton, enfermeiro brasileiro que morara em Paris.
Chaim Katz conta que, certa vez, a pedido de Foucault, foi levar uma encomenda ao amigo do filósofo francês. Era o pagamento de uma palestra feita no Brasil, que deveria ser entregue a Hamilton. Num edifício enorme e pobre, com centenas de apartamentos, Katz se encontrou rapidamente com um sujeito que descreve como “mulato, relativamente bonito”.
Pouco antes de deixar o Brasil pela última vez, Foucault chamou Machado e Katz para uma conversa. Disse que seu amigo estava doente e que iria procurá-los. Pediu que o ajudassem da melhor forma possível. Hamilton nunca pediu a ajuda dos amigos de Foucault.

CALIFÓRNIA 
E o filósofo nunca mais voltou ao Brasil. No final dos anos 70, foi descoberto, com relativo atraso, pela universidade norte-americana. Ao mesmo tempo em que ele próprio descobriu a Califórnia, ou melhor, San Francisco.
Mesmo as conversas por carta com seus admiradores mais próximos no Brasil cessaram. Novos convites de visita foram feitos, mas Foucault não se mostrou interessado. “Acho que foi o encontro com os Estados Unidos”, explica Machado.
“Ele ficou deslumbrado. Encontrou por lá um debate mais afinado com as pesquisas que estava fazendo no momento, as trocas intelectuais foram intensas. Também encontrou nos Estados Unidos movimentos organizados, como o dos homossexuais e dos negros, que já usavam ideias que ele valorizava muito. Uma coisa é ser admirado no Brasil. Outra é ser acolhido nas grandes universidades americanas.”

2 comentários sobre “Foucault neoliberal?

  1. Tarso, mude essa chamada, está parecendo coisa da veja. Outra coisa, o Foucault é um dos pensadores mais importantes da comtemporaneidade e o texto da folha parece estar mais preocupado em expor suas opções sexuais. Enfim, uma droga o texto da folha, como sempre.

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