40 anos com Prestes – Maria Prestes

‘Ele gostava de criança, cozinhava, descascava um bom abacaxi’, diz a viúva do dirigente comunista

Hoje na Folha de S. Paulo

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

RESUMO A pernambucana Maria Ribeiro Prestes viveu por 40 anos com Luiz Carlos Prestes [1898-90], dirigente do PCB, 34 anos mais velho. Os dois se conheceram quando ela, militante, foi destacada para fazer a segurança dele na clandestinidade, nos anos 50. Para enganar a vizinhança, o chamava de Pedro, apelido que ficou. Em seu apartamento, no Rio, cheio de recordações do exílio em Moscou, ela lembrou passagens dramáticas de sua vida.


Meu pai, João Rodrigues Sobral, era camponês de Poção (PE). Em Recife, trabalhou numa fábrica de óleo de mamona e depois abriu um armazém no bairro onde nasci em 1932. Ele via pessoas furtarem feijão, um pedaço de carne. Ficava revoltado com a pobreza.

O armazém era frequentado por pessoas de ideias evoluídas, que o levaram ao Partido Comunista. Tornou-se um revoltado, como se dizia. Era analfabeto, eu ensinei meu pai a ler e escrever.

Em 1935, minha mãe faleceu e teve aquele movimento [Intentona Comunista]. Meu pai foi preso, torturado. Depois, deportado de navio para o Rio, mas na Bahia se jogou no mar. Voltou para Recife a pé e passamos à clandestinidade.

Em Recife, entrei na Juventude Comunista. Distribuía volantes, fazia pichação. Fui presa, rasparam a minha cabeça. Vi o Prestes pela primeira vez em 1945, num comício da campanha dele para o Senado. Eu fiz a segurança dele com outros jovens.

SEGURANÇA

Aos 18 anos arranjei um marido, que não deu certo. Meu pai estava em São Paulo, doente, e me mandaram para a casa dele. Morreu em 1952 incógnito porque usava outro nome. Nunca soubemos onde foi enterrado.

Na época o registro do partido tinha voltado a ser cassado. Me disseram que eu ia cuidar de um dirigente. Só vi quem era no dia em que Prestes chegou. Ele ficou até 1959 sob minha responsabilidade.

Antes eu era Altamira Rodrigues Sobral, e, por segurança, me deram documentos em nome de Maria do Carmo Ribeiro, nascida em 1930.

Na época o Giocondo Dias [dirigente comunista, 1913-1987] nos dava assistência. Eu tinha já dois filhos, Pedro e Paulo. Um belo dia Prestes propôs casamento. Eu disse que já tinha sido frustrada, que não aceitava assinar papel com ninguém. Ele disse que tinha gostado de mim.

“Não posso ser uma boa companheira porque não sou intelectual que nem você, sou uma pessoa comum”, respondi. E ele: “Se fosse casar com uma intelectual, os nossos pensamentos iam estar sempre em contradição”.

“Tudo bem, se não der certo você vai para um lado e eu para o outro”, eu disse.

Nunca casamos no papel. Vivemos 40 anos juntos e nunca brigamos. Ele valorizava o trabalho da mulher e da mãe. Gostava de criança, cozinhava, fazia biscoito, bolo, bacalhau à portuguesa, descascava um bom abacaxi.

Me ensinou a ler os clássicos, Shakespeare, Dickens, Górki, Dostoiévski. Toda semana eu e o Giocondo tínhamos aula de leitura com ele.

Um motorista, o José das Neves, aparecia em público comigo e as crianças, fazendo as vezes de marido. Para os vizinhos não perceberem que tinha mais gente na casa, a gente chamava o Velho de Pedro, nome do meu filho. Chamei ele de Pedro até o fim.

Tive o João, a Rosa, a Ermelinda. Quando veio a semilegalidade [no final do governo Juscelino Kubitschek], tive o Luiz Carlos, a Mariana, a Zóia e o Yuri. Um dia eu disse, “vamos parar?”. E ele: “Deus quer, né. Vamos ter filhos”. Gostava de família grande, achava que devia dar continuidade à vida.

As crianças não sabiam que ele era o pai, chamavam de tio. Todos só foram saber depois, em Moscou.

Depois de 1964, Prestes teve que se esconder de novo, mas eu não podia porque tinha os filhos em idade escolar. Tinha uma câmera em frente à nossa casa filmando quem entrava e saía.

Mesmo assim, me encontrava com Prestes. Até viajamos. Levantei a proposta de irmos embora. Fui com as crianças em 1970 para Moscou e nos deram um apartamento de onde a gente via a Praça Vermelha. Em 1971 o Velho chegou.

Queriam que eu botasse os meninos numa escola para filhos de estrangeiros. Eu disse que preferia que fossem estudar com os filhos das pessoas comuns. Eles não sabiam uma letra de russo, mas o PC soviético botou uma professora que ia três vezes na semana dar aula para nós.

Ainda falo russo. É um idioma muito sonoro, meigo. Meus filhos se formaram lá.

Conheci todas as 17 repúblicas soviéticas e muitos países europeus. Nossa casa era mais frequentada do que a Embaixada do Brasil. Fazíamos sempre feijoada.

COMUNISMO

A readaptação foi complicada. Tinha o Comitê da Anistia que nos ajudava, o Oscar Niemeyer, o João Saldanha.

Acho que ainda sou comunista, sim. A exploração do homem pelo homem não acabou. No sistema socialista não tinha desemprego. Havia problemas, mas o povo trabalhava e recebia salário.

Tenho 24 netos e nove bisnetos. Todo ano a gente se reúne no aniversário do Velho, 3 de janeiro. Os meninos criaram o blog [mariaprestes.blogspot.com], mas não gosto muito. Com a internet, as pessoas não se encontram.

Ainda vou a atos políticos. O exercício que faço é andar. Gosto de cinema, do Almodóvar. Esse filme “A Pele que Habito” é impressionante.

De vez em quando faço uma sopa russa de beterraba e convido minhas amigas. Chamo meus filhos e a gente faz uma noite de russo, eles cantam, recordamos alguns momentos. Se fosse me preocupar com o passado, não era o que sou. Acho que a gente tem que ser otimista, almejar algo melhor.

FOLHA.com
Leia o depoimento de Maria Prestes na íntegra
www.folha.com/no1031285

Entrevista com filha de Luiz Carlos Prestes sobre a Coluna Prestes

Gazeta do Povo de sábado

Coluna Prestes, a maior marcha da história mundial

Anita Leocádia Benário Prestes, historiadora, filha de Luiz Carlos Prestes e Olga Benário Prestes

POLLIANNA MILAN

Ela nasceu em uma prisão da Alemanha e só conseguiu ser libertada de lá com a ajuda do clamor popular: foi a partir de uma Campanha Internacional – liderada pela avó paterna Leocádia Prestes – que Anita conseguiu a liberdade em 1938: ela tinha 1 ano e dois meses. Filha dos comunistas Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, ela foi entregue à avó e a Lygia (irmã mais nova de Prestes) pela Ges­­tapo. Detalhe: sem documentos que comprovassem que ela pertencia à família Prestes. “Saí da prisão com um passaporte no nome da minha mãe.”

Elas foram até Paris. Quando a Segunda Guerra Mundial se aproxima, contudo, elas têm de ir ao Mé­­xico, para onde iam grande parte dos perseguidos políticos. Tia Lygia acaba criando Anita e, em 1945, elas conseguem vir ao Brasil por causa da anistia política. “Foi aí que conheci meu pai. Eu tinha 9 anos.” Em 1947, o Partido Comu­nista é proibido no Brasil e todos ficam na clandestinidade. Anita e a tia vão para Moscou, em 1950, onde ficam por sete anos e voltam ao Brasil, onde começa a participar dos movimentos políticos até 1964, quando ocorre o golpe. Elas retornam a Moscou (1973), onde Prestes vivia havia dois anos. Voltam ao Brasil em 1979.

 Pesquisas

Anita Leocádia Benário Prestes é historiadora e esteve em Curitiba no início deste mês a convite do Arquivo Manoel Jacinto Correa para uma palestra. Em entrevista à Gazeta do Povo, ela contou sobre as pesquisas que tem feito sobre o pai. Para ela, é preciso es­­tudar mais a Co­­luna Prestes, porque “a figura de Prestes foi caluniada, silenciada e de­­turpada.”A Co­­luna percorreu 25 mil quilômetros em dois anos e três meses, do Rio Gran­­de do Sul ao Maranhão, com o intuito de derrubar as oligarquias que dominavam o país e fazer uma reforma política. É tida como a maior marcha da história da humanidade. Confira alguns trechos da entrevista.

Quais as inovações da Coluna Prestes no conflito com as oligarquias?

Ela tem uma tática totalmente no­­va, bem diferente da guerra de posição, que era a que se conhecia [a de soldados que ficam parados e prontos para atirar]. A questão é que o exército não estava preparado para enfrentar uma guerra de movimento que foi a Coluna. Eles se moviam e estavam bem informados porque tinham as potreadas, nome que se dava ao grupo que se afastava para conhecer o território, conseguir gado e alimentos e levantar informações [com a população] sobre o movimento dos inimigos.

O que acontecia quando o grupo chegava às cidades?

A questão é que o governo fez uma política intensa no país apresentando-os como malfeitores e bagunceiros. A população, então, tinha medo e grande parte fugia e se escondia. Mas, depois que conheciam o movimento, tinham prestígio diante da população porque mostravam que combatiam um governo que, para a população da época, só sabia cobrar impostos e significava violência policial.

Prestes lhe contou o que mais o impressionou durante suas andanças?

Ele disse que o que mais impressionou a ele e aos comandantes era a miséria que viram pelo interior do Brasil. Quem vivia na cidade não tinha ideia do horror que era a vida do trabalhador rural. Isso causou um impacto grande que o levou à conclusão de que aquele ideário liberal que tinham não iria resolver aquele problema. Aí que meu pai decide ir ao exterior para estudar, encontrar uma solução para os males do Brasil.

A senhora vai lançar um novo livro com dados inéditos?

Sim, principalmente dos últimos 30 anos da vida de meu pai. Existem documentos inéditos que mostram a evolução do pensamento dele e da crítica crescente que ele faz sobre o partido. Devo lançar o ano que vem.

Na sua opinião, a Coluna venceu?

Embora não tenha saído vitoriosa, porque não cumpriu com o objetivo de derrubar o presidente Artur Bernardes e assumir o poder, a Coluna saiu do Brasil [para a Bo­­lívia] invicta, apesar de muita gente ter morrido pelo caminho. E a repercussão dela foi grande: teve prestígio na crise da República Ve­­lha e contribuiu para a chamada Revolução de 30.

Quando Prestes rompe com o Partido Comunista do Brasil?

Ele tentou de todas as maneiras mu­­dar o partido por dentro, discutindo… Quando se convenceu que não tinha como mudar, ele resolve romper arcando com todas as consequências. Aí ele fica sozinho, sem apoio. Só tem um grupo de amigos que vai se reunir e arrecadar recursos financeiros para ele viver seus últimos dez anos de vi­­da. Oscar Niemeyer dá a ele um apartamento. Os amigos deram um carro. E depois ele faz uma coleta mensal para sobreviver.

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Foto 1 Ao centro, Leocádia Prestes e, à direita, Lygia, as duas mulheres que criaram Anita; foto 2 Anita Leocádia Benário Prestes: nascimento em presídio na Alemanha; foto 3 Prestes e Olga no dia em que foram presos pela polícia de Filinto Müller, em 1936.