A culpa é da maçã – Mino Carta da Carta Capital

Um jurista italiano, Guido Rossi, escreveu no começo do terceiro milênio um livro intitulado Il Gioco delle Regole, o jogo das regras, que infelizmente não foi traduzido no Brasil. Não é muito volumoso, mas naquelas pouco mais de cem páginas conta-se uma história a seu modo assustadora, não sei se de suspense ou de terror.

Não se trata, a rigor, de uma revelação, o enredo está ao alcance de quem for medianamente atento às coisas do mundo. Ocorre, porém, que Rossi registra com precisão ao conectar fatos, ao fornecer números e ao tirar conclusões. Eis aí, donas do planeta são 80 corporações que alongam seus tentáculos em todas as direções. Senhoras incontestes, e os governos nacionais agem na melhor das hipóteses, como seus sátrapas. Elas determinam e eles se adéquam. Adaptam-se. Conformam-se. Se preferirem, executam.

Permito-me recear, de vez em quando, que o entrecho comece pela maçã da árvore do Bem e do Mal. Naquele arrepiante momento provocado pela serpente o homem se teria evadido do esquema traçado pela natureza, se quiserem pelo Criador. De fato, Adão e Eva foram sumariamente enxotados do Paraíso Terrestre pelo anjo de espada desembainhada. Diz a Bíblia que Deus vaticinou para os expulsos sangue, suor e lágrimas, para ser imitado, muito tempo depois, por Winston Churchill. Avento a hipótese, não sem ousadia herética, que o Altíssimo tenha anunciado, enquanto o casal se afastava de carreira, a intenção de lavar as mãos em relação ao destino dos enxotados.

O homem estava fora do desenho perfeito e, nesta linha, o neoliberalismo imposto ao mundo pelos donos efetivos do poder globalizado é o último efeito da ingestão da maçã maligna. Perceba-se o que ocorreu neste penoso ano de 2011, e continua a ocorrer sem previsão quanto ao desfecho da crise mundial: os governos nacionais repetem os erros cometidos em 2008, na primeira onda do terremoto, agravados dramaticamente pela repetição, em obediência aos interesses dos inoxidáveis donos do poder real.

Muito antes de 2008 citei Rossi neste espaço. Depois, e mais de uma vez, fiz referência ao documentário Inside Job, ganhador do Oscar, exibia os rostos de muitos entre os responsáveis pelo desastre que permaneceram em seus postos de comando como se merecessem promoção. A segunda onda do terremoto transcende em virulência a primeira e ameaça causar danos maiores do que o craque de 1929. Habilita-se a tragar o euro sem deixar de globalizar a tragédia.

Medidas draconianas são tomadas na Europa na tentativa de salvar a moeda, com 60% de chances de êxito, na avaliação da The Economist. Nenhuma dessas previdências recorda o New Deal de Franklin Delano Roosevelt e John Maynard Keynes (leia nesta edição especial o retrato que Luiz Gonzaga Belluzzo traça da incomparável personagem e de sua influência no enfrentamento da crise de 29). E como poderiam?

A linha adotada então conferiu ao Estado um papel soberano e se pautou pela equidade no empenho em promover emprego e taxar os ricos. Ações que carregam, digamos assim, o cheiro acre, demoníaco do enxofre, aos narizes dos representantes das corporações financeiras, muitos deles instalados no leme de economias regionais e nacionais. Nas circunstâncias, mais funcionam hoje as ações entre amigos, e a tal de equidade que se moa.

Não há escape possível sem retorno ao senso perdido, e não somente no campo dominante da política econômica onde vigora o princípio de que, -desamparada da produção de bens e serviços, a de -dinheiro, simplesmente, basta ao garantir a felicidade de poucos. O senso significa, em geral, restabelecer o exato valor da moeda, ao sabor de antigas fórmulas de comprovada eficácia, adaptadas aos dias de hoje, está claro, fiéis, porém, na essência, a conceitos inextinguíveis.

Florins, dracmas, sestércios, coroas, libras assumiram valores atrabiliários ao sabor de conveniências contingentes, de modas e vezos passageiros, de manias e obsessões arbitrárias. O desvario varre todas as áreas das manifestações humanas igual a um ciclone. Digamos, da arte ao futebol, no enterro do espírito crítico e do bom gosto, da ética e da consciência do efêmero. E no aprofundamento dos desequilíbrios sociais, voragem entre ricos e pobres.

O Brasil não escapa, a despeito de alguns importantes avanços quanto a essas diferenças, assim como não escapa à crise econômica mundial, cujos efeitos surgem com nitidez neste final de 2011. Há bons motivos, contudo, para crer que as consequências serão menos graves para nós do que para muitos companheiros da áspera jornada. Devemos a confiança em primeiro lugar ao próprio Brasil, único pelas dádivas da natureza, distante ainda de ser o que merece, mas destinado, finalmente, ao futuro há tempo profetizado.

Há motivos outros. O País vive uma mudança evidente, que só a mídia finge não perceber, a envolver o estilo de governo, de Lula primeiro e de Dilma Rousseff agora. No entendimento de –CartaCapital, a eleição do operário à Presidência da República é o divisor de águas, antes ainda das realizações dos seus dois mandatos. Temos razões de satisfação por ter tomado partido a favor de Lula em 2002 e 2006, e por Dilma em 2010. Ao cabo de um ano de governo, a presidenta mostrou a que veio. Com sua determinação, energia, senso de responsabilidade, qualidades transparentes e indiscutíveis.

Com Dilma, o Brasil não perdeu em prestígio internacional, pelo contrário o ampliou. Em termos econômicos, mesmo um crescimento bastante inferior ao dos dois anos precedentes é raro na atual conjuntura global. Como se deu com Lula, a presidenta foi alvo constante do denuncismo midiático com resultado oposto àquele visado pelos barões do jornalismo nativo e dos seus sabujos. A cada tentativa de colocar o governo em dificuldade a popularidade de Dilma fermenta. Em 2011 jornalões e revistonas especializaram-se na técnica abstrusa do furo n’água. •

Guerra de togas – Anderson Furlan e Sérgio Fernando Moro

Publicado na Gazeta do Povo do dia 24 e 25 de dezembro de 2011

A atuação do CNJ, com suas funções de controle e correição, não deve ser vista como inimiga da magistratura e de sua necessária independência

Instalaram-se novas polêmicas sobre a atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No encerrar do ano judiciário, duas liminares concedidas por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) reduziram os poderes de investigação do CNJ. Nos dois casos, as liminares decorreram de ações propostas por associações de magistrados. Em seguida, a polêmica foi incrementada por notícias de jornal de que um dos ministros do STF seria indiretamente beneficiado pela liminar, e ela ainda se elevou quando associações de magistrados acusaram a Corregedoria do CNJ de exorbitar os seus poderes, quebrando o sigilo fiscal e bancário de mais de 200 mil magistrados e servidores, e informaram que iriam solicitar investigação sobre esses atos.

Corre-se o risco de, no calor da polêmica, perder-se de vista o que é realmente importante, a discussão acerca das funções e limites do CNJ, incluindo a de sua Corregedoria. Alega-se que o CNJ não deveria conhecer de casos de má-conduta de juízes, salvo no caso de omissão ou mau funcionamento das Corregedorias locais. Argumenta-se que, com isso, evitar-se-ia que o CNJ se transformasse em uma supercorregedoria. A restrição também forçaria as corregedorias locais a se estruturarem e funcionarem adequadamente.

Nada há no texto constitucional que criou o CNJ e a Corregedoria Nacional de Justiça que autorize interpretação da espécie, que transformaria o CNJ em mera instância recursal das correições locais. Também não há nada que impeça uma ação do CNJ destinada a estruturar e cobrar o funcionamento das corregedorias locais, sem prejuízo de conhecer diretamente os casos de má conduta funcional que repute mais graves.

No fundo, o argumento, se acolhido, burocratizará a atuação da entidade e beneficiará apenas os malfeitores na magistratura. Esses são poucos, é verdade, mas não há qualquer motivo para impor barreiras puramente burocráticas em seu favor. Alega-se que a Corregedoria do CNJ teria quebrado o sigilo fiscal e bancário de mais de 200 mil magistrados e servidores.

A questão precisa ser melhor entendida. Os juízes, como os demais servidores públicos, devem encaminhar todo ano cópia de suas declarações de bens aos respectivos órgãos de controle, conforme disposição da Lei n.º 8.429/1992. Tal exigência reflete o fato de a conduta dos agentes públicos estar sujeita a maior escrutínio público. Se os juízes estão obrigados a encaminhar cópia de suas declarações, é evidente que não se pode opor sigilo fiscal aos respectivos órgãos de controle, como a Corregedoria Nacional de Justiça. Seria como pretender sigilo fiscal diante da Receita Federal que recebe essas declarações todos os anos.

Por outro lado, o que se lê no jornal foi que a Corregedoria do CNJ teria repassado ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) o número do CPF de juízes, de servidores e parentes, solicitado informações sobre a existência comunicações de “operações financeiras suspeitas”. Relembre-se que o COAF foi criado pela Lei 9.613/1998 como órgão de inteligência para prevenção de lavagem de dinheiro. Recebe nessas condições informações das instituições financeiras acerca de operações suspeitas de lavagem de dinheiro, devendo repassá-las de ofício aos órgãos competentes para investigação. A solicitação do CNJ de informações dessa espécie não é o equivalente a uma quebra de sigilo bancário, com requisição de extratos e documentos financeiros, de juízes, servidores e parentes. Pode-se eventualmente até discutir se o CNJ poderia realizar tal solicitação, mas não é correto afirmar que com ela teria sido quebrado o sigilo bancário de mais de 200 mil pessoas.

Enfim, o CNJ, desde a sua criação em 2004, cometeu erros e acertos. É um órgão público sujeito a críticas da sociedade e mesmo pelos juízes e suas associações. Entretanto, perde-se o bom debate quando a polêmica inflama-se, ambiente no qual vaidades, jogos de poder e intrigas de bastidores assumem maior relevância do que bons argumentos. Juízes não são vilões e nem devem ser vistos como tais, ainda que alguns poucos possam se corromper. Doutro lado, a atuação do CNJ, com suas funções de controle e correição, não deve ser vista como inimiga da magistratura e de sua necessária independência.

Seria muito positivo se as associações da magistratura, sem perder a postura crítica, revisassem seu recente posicionamento contra esse órgão e em especial contra a Corregedoria Nacional de Justiça. Seria igualmente muito positivo se, para além de falsas polêmicas, o debate pudesse ser tratado em nível elevado, com a prevalência dos bons argumentos. Será pelo menos necessário um bom debate quando o Supremo for decidir em definitivo as ações propostas pelas associações de classe contra o CNJ.

Anderson Furlan, juiz federal, presidente da Apajufe (Associação Paranaense dos Juízes Federais). Neste artigo, o autor expressa sua opinião pessoal e não a da entidade.

Sérgio Fernando Moro, juiz federal, é titular da 2ª Vara Federal de Curitiba, especializada em crimes de lavagem de dinheiro.